Os restos dos campos de trabalho, ou Gulag, ainda salpicam a geografia russa. Mas Putin quer que não se fale disso. |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
A máquina de propaganda do Kremlin ainda hoje tenta silenciá-las, mas as “heroínas do Gulag” não temem contar os sofrimentos indizíveis que passaram na rede de campos de concentração soviéticos, ou Gulag, onde eram encerrados os “inimigos do povo”, prisioneiros políticos e opositores do regime.
No livro “Vestidas para um baile na neve” (Galaxia Gutenberg, 2017) Monika Zgustova recolheu alguns de seus estarrecedores relatos, conta reportagem de “El Mundo” de Madri.
“O complexo da fome está comigo até hoje”, lembra Janina Misik, uma das nove sobreviventes entrevistadas.
Elas eram obrigadas a trabalhar do alvorecer até o pôr do sol e só recebiam 300 gramas de pão para sustento. Por vezes lhes davam sopa de couve podre, mas quando não havia deviam se contentar com água requentada.
Como chegaram até lá?
Janina levantou-se da cama por volta das cinco da manhã de 10 de fevereiro de 1940. Homens da NKVD, predecessores da KGB e da atual FSB, berravam na sua porta.
Suas brutalidades e modos criminosos eram bem conhecidos. Aqueles chamados na porta sabiam que era o fim de sua liberdade.
Zayara Vesiólaya, uma das nove sobreviventes entrevistadas
— “Aprontem a bagagem!” gritaram eles.
Janina tinha cinco anos, mas sabia que nunca mais voltaria para casa. Sua mãe não se moveu.
— “O que você pretende fazer conosco? Esta é a nossa casa, nós moramos aqui!”, implorou a pequenina inutilmente.
Sua mãe foi ajudada pelo irmãozinho de Janina, de nove anos de idade.
Depois de duas semanas num vagão para gado, chegaram a Novgorod (sudeste de São Petersburgo), um dos campos de concentração do Gulag.
“Eles nos acomodaram em cabines de madeira. Nossa família de cinco recebeu um só beliche. Nós nos sentimos como numa gaiola. O trabalho consistia em cortar árvores quatorze horas por dia, afundados na neve.
“No Gulag passamos por experiências muito fortes, como a crueldade dos guardas e o meio ambiente, porque os prisioneiros políticos foram misturados com criminosos comuns e ficaram submetidos a eles. A outra crueldade era a do trabalho que se exercia em condições desumanas”, registra Monika.
A fome era tal que muitos não diferenciavam a vida da morte.
“A tristeza nos invadiu, não sabíamos o que nos aconteceria e estávamos permanentemente famintos. As crianças sonhavam com apenas uma coisa: ter pão”, confessou Janina.
O campo de trabalho forçado de Vorkuta acumulava 28.000 prisioneiros |
Mas como o socialismo não produzia apelou para o Gulag. E usou o trabalho forçado para acelerar a industrialização e explorar os recursos naturais no gélido extremo norte.
No livro “Gulag: Historia dos campos de concentração soviéticos” (Debate, 2004) a jornalista Anne Applebaum registra que “a polícia secreta soviética assumiu o controle do sistema penal, tirando os campos e prisões de todo o país do controle do Judiciário”.
Entre 1937 e 1938 aconteceram detenções maciças: foi o Grande Expurgo, ou Yezhovschina.
Os prisioneiros deviam produzir ouro, madeira e carvão para o desenvolvimento da aeronáutica e do armamento.
“Dentro do sistema, os presos foram tratados como gado”, explica Applebaum. Eles foram explorados, reificados e mercantilizados. Se os presos não fossem produtivos, suas vidas não tinham valor.
Não houve distinção: foi o triunfo da igualdade homem-mulher. Homens e mulheres deviam ter a mesma habilidade para realizar as tarefas pesadas.
A ração de pão era de 300-400 gramas por dia por prisioneiro; faltavam os instrumentos para cortar as árvores ou extrair o carvão; não existiam condições higiênicas básicas e vinha abaixo a integridade física dos prisioneiros.
“Durante o dia, fomos ao bosque para trabalhar como lenhadores, incluindo mulheres grávidas. Em vez dos 400 gramas de pão obrigatórios e insuficientes, recebemos 200. Não havia sopa, mas água reaquecida. Um mundo de dor e sofrimento”, contou Valentina à escritora Zgustova.
Restos do campo de Arcangelsk,
onde morreram muitos ucranianos católicos
deportados e escravizados
No campo de Arcangelsk no norte da Rússia, Valentina cavou dia e noite para construir vias férreas.
“Logo os piolhos apareceram, brancos e grandes. Em nenhum outro campo, os vi assim. Nós os esmagamos contra o fogão”.
A tortura diária a que foi submetida levou-a a tentar tirar a própria vida. Da maneira mais cruel.
“Havia pipas com cal viva. Corri ali, encontrei um copo de meio litro e o bebi. Eu senti uma queimadura terrível, como se o estômago estivesse rasgado”, lembrou ela.
Zgustova conta que “várias mulheres se queixaram de que seus maridos estavam transtornados com o Gulag, viam tudo muito preto, muito escuro, muito terrível e estavam acabrunhados”.
Alguns túmulos cristãos no campo de trabalhos forçados de Solovki |
Ela acrescenta que, entre 1929 e 1953, data da morte de Stalin, seis milhões foram enviados para o exílio ou deportados para os desertos do Cazaquistão e para as florestas da Sibéria, onde ficaram como trabalhadores forçados.
Ao retornar, os prisioneiros descobriam que suas casas haviam sido confiscadas havia muito tempo e que seus pertences haviam desaparecido.
Eles estavam estigmatizados com o sinal de “inimigo” nas costas e isso obstaculizou qualquer reintegração social e laboral.
Muito tempo depois de terem sido libertados, as famílias dos “inimigos” ainda eram estigmatizadas, sujeitas a formas oficiais de discriminação e não podiam trabalhar em certos empregos.
Susana Pechuro, outra dos sobreviventes do terror stalinista contou: “Ninguém em liberdade podia imaginar o que eu tinha experimentado”.
Putin não quer que isso se divulgue. Em fim de contas, foi uma das “grandes realizações” de Stalin, o seu modelo de homem político, pragmático, frio e eficaz.
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