domingo, 28 de junho de 2020

Putin proíbe falar dos massivos crimes stalinistas

Yury Dmitrieyev achou túmulo de mortos em massa em Sandarmokh, na Carélia
de pessoas mortas pela polícia de Stalin. Foi logo aprisionado com falsas acusações.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs









Durante mais de 20 anos Yury Dmitrieyev procurou cotidianamente durante horas rastros de cadáveres enterrados entre árvores, numa floresta infestada de mosquitos em Sandarmokh, na Carélia, península do norte da Rússia.

Um dia, Dmitrieyev, que é um historiador amador pertinaz, acabou encontrando o terrível objeto que caçava: montículos sob os quais se acumulavam os restos mortais de prisioneiros políticos executados pela polícia de Stalin.

Mas isso aconteceu já no governo de Putin, e o historiador foi punido com prisão.

Katerina Klodt, 35 anos, filha de de Dmitrieyev, conduziu o jornalista Andrew Higgins, do “The New York Times”, a um canto da floresta de Sandarmokh.

“Tudo começou aqui. O trabalho do meu pai deixou claramente algumas pessoas muito mal à vontade” — disse ela.

Dmitrieyev está agora no cárcere, indiciado com acusações de pedofilia descaradamente fabricadas, usadas com frequência para desacreditar e silenciar vozes das quais as autoridades não gostam.



Um funcionário da Carélia acusou o historiador de criar um “sentimento infundado de culpa” explorado pela “propaganda de potências estrangeiras contra a Rússia”.

Uma equipe da Military Historical Society visitou sub-repticiamente a floresta e descobriu os restos de 16 cadáveres. A entidade é do governo.

Dois historiadores da Carélia argumentam que os milhares de pessoas enterradas em Sandarmokh não são todas vítimas de Stalin, mas incluem soldados soviéticos executados pelo exército finlandês.

Os exterminados não foram só russos, mas católicos de outros países.  Orações em outro túmulo de massa perto de São Petersburgo.
Os exterminados não foram só russos, mas católicos de outros países.
Orações em outro túmulo de massa perto de São Petersburgo.
Digam o que quiserem, os cadáveres de incontáveis assassinados estão ali. Não se pode negar, e é preciso tirar a limpo quem diz a verdade.

Putin e os seus não negam os horrores de Stalin, mas jogam a culpa em agressores estrangeiros. Afinal de contas, Stalin é o governante modelo, pragmático e eficaz, que Vladimir Putin quer imitar.

Não muito depois, o curador de um museu perto de Sandarmokh que apoiou o trabalho de Dmitrieyev também foi preso por pedofilia e acabou morrendo suspeitamente num hospital carcerário de doença não especificada.

Anatoli Razumov, diretor do Centro de Recuperação de Nomes em São Petersburgo, é coautor com Dmitrieyev de um livro com os nomes de mais de seis mil pessoas mortas pela polícia secreta de Stalin em Sandarmokh ou nas proximidades.

Para ele, a procura de provas das supostas atrocidades dos finlandeses visa confundir fatos claros sobre o passado da Rússia.

O governo mistura slogans nacionalistas com conjecturas selvagens com o único intuito de confundir e distorcer.

As mesmas táticas estão sendo utilizadas para atrapalhar o esclarecimento do mais infame extermínio na Rússia comunista: o da floresta de Katyn, onde a polícia secreta de Stalin – a NKVD, depois KGB e hoje FSB – executou friamente em 1940 mais de 20 mil oficiais, clérigos e intelectuais poloneses inermes.

Dmitrieyev, 64 anos, foi preso pela primeira vez em dezembro de 2016, pelas suas descobertas em Sandarmokh.

Cfr.: Putin manda silenciar crimes de Stalin

Um tribunal em Petrozavodsk o absolveu em 2018 de todas as acusações de suposta exploração pornográfica de sua filha adotiva.

Em 2018 a mais alta corte de Carélia anulou a absolvição e ordenou novo julgamento. Os advogados de Dmitrieyev acham possível a absolvição, mas o “condenado a priori” foi encerrado num centro lotado de casos graves de coronavírus.

Cemitério de vítimas de Stalin em Levashovo perto de São Petersburgo. Muitos russos querem saber o destino final de seus antepassados
Cemitério de vítimas de Stalin em Levashovo perto de São Petersburgo.
Muitos russos querem saber o destino final de seus antepassados
“Todo esse caso é um horror”, disse Natalia Pakentis, uma ex-dançarina de balé em Petrozavodsk, que acredita que seu avô tenha sido executado em Sandarmokh em 1938.

“Milhões de pessoas foram mortas e todas elas têm famílias. Como podemos agora fingir que nada disso realmente aconteceu?”, pergunta Natalia, angustiada.

Que centenas de milhares de pessoas foram executadas pelo NKVD, precursor da KGB, na qual se formou Putin, já era conhecido havia décadas, quando Dmitrieyev começou sua busca por ossos nos anos de 1990.

Seu crime foi ter descoberto as valas comuns em Sandarmokh, quando poucos campos de extermínio puderam ser vasculhados, mesmo os mais conhecidos.

Na vila siberiana de Kolpashevo descobriu-se um desses campos em 1979, quando um rio próximo despejou mais de mil cadáveres mumificados. O local era silenciado ou se falava de área comemorativa do heroísmo soviético.

No momento de sua prisão inicial, Dmitrieyev era presidente do ramo de Carélia do Memorial, um grupo que procura restaurar a memória histórica dos milhões de mártires cruelmente assassinados.

Isso enfurece nacionalistas russos, e com a nova Constituição de Putin esse grupo corre o risco de ser gravemente punido.

O Memorial aponta os sofrimentos dos russos, ucranianos e outros nas mãos da polícia secreta, e não de “estrangeiros” mal identificados, pois não se pode explicar como teria sido possível aos mesmos agir e matar tanto no interior do país.

Em 2012 as autoridades russas classificaram o Memorial de “agente estrangeiro” e desde então o grupo vem sendo demonizado pela mídia estatal como um ninho de traidores depravados apoiados pelo Ocidente.

Cfr.: Nomes dos carrascos da polícia secreta estalinista saem a público

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