Putin: um czar espúrio para desmoralizar a saudade da monarquia no povo russo |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Parece piada, mas o diretor de cinema russo Slava Tsukerman ficou impressionado com a quantidade de apelos circulando na Internet na Rússia em favor de “Putin Czar”, segundo reconheceu em Real Reporting.org.
A propaganda aparece acompanhada de abundantes arranjos fotográficos de qualidade.
Esses não podem provir de um indivíduo isolado ou de algum grupelho excêntrico, mas de uma central com muitos recursos.
O tema – escreveu Tsukerman – se transformou num dos mais falados na mídia russa, em sua imensa maioria nas mãos do regime.
Escritores e jornalistas de há muito apelidaram Putin de Czar mais como sátira ou crítica a seus poderes virtualmente onímodos, sem pensar no velho e mítico sistema monárquico de séculos passados.
Livros e longos artigos foram escritos nessa clave metafórica ou até irônica em jornais como “The New York Times” ou “Politico Magazine”, sem nunca pensar numa coroação do ex-coronel da KGB.
Mas, nos últimos meses, a hipótese virou de tom 180º e passou a ser levada muito a sério.
No canal televisivo governamental “Rússia”, o metropolita Hilarion, chefe das relações exteriores do Patriarcado de Moscou e um dos mais influentes líderes da Igreja Ortodoxa Russa declarou:
“A forma monárquica de governo tem vantagens sobre o sistema eleitoral e foi positivamente testada na História [...].
“Minha opinião pessoal é de que um homem ungido pelo clero e que recebe não apenas um mandato dos eleitores para um cargo por um determinado período, esse homem pode ser sagrado pelo seu próprio reino por meio da Igreja.
“Ele pode receber um mandato para toda a vida, até que transfira o poder para o herdeiro.
“Esta, é claro, é a forma de governo que se provou na História e que tem muitas vantagens sobre quaisquer outras formas de governo baseadas na eleição”.
O metropolita Hilarion, porta-voz do Patriarcado de Moscou
confirmou que esse estaria disposto a sagrá-lo 'czar'
A interpretação do público foi unânime: o metropolita falava de Putin, que se reelegeu na última eleição presidencial, mas que não poderá voltar a ser reeleito em 2024 porque a Constituição o impede. Então, é claro, a Constituição precisa ser mudada!
Putin está no poder desde o ano 2000 (computando o período intermediário de seu secretário Dmitri Medvedev), mas não contente em continuar como governante supremo, ele quer também ser vitalício. Como consegui-lo?
Alexander Prokhanov, diretor do jornal de extrema-direita “Zavtgra” (“Amanhã”), que combina ultranacionalismo e comunismo, é autor de mais de 30 novelas e atualmente um dos escritores mais populares da Rússia.
Ele teria tido uma conversão política ouvindo as palavras do metropolita Hilarion (risum teneatis!) e passou de inimigo agressivo do governo de Putin a um de seus mais ativos apoiadores. Ele comentou:
“O padre Hilarion fez uma declaração muito importante [...] que não foi feita por acaso e sem motivos. Foi feita no momento certo e para o grande público.
“O que está por trás? [...] A igreja é o berço no qual o bebê da nova monarquia russa está crescendo”.
Prokhanov atribui dois motivos ao posicionamento do metropolita.
Primeiro, é a sempre crescente influência do Patriarcado de Moscou não só no povo russo, mas também na política externa do país.
O escritor sublinha o enorme efeito que teve a veneração pública das relíquias de São Nicolau de Bari.
A romaria atraiu a Moscou centenas de milhares de pessoas, mas nas cidades russas elas teriam sido milhões, pessoas na sua maioria aparentemente sem religião após quase sete décadas de ateísmo soviético.
As relíquias do santo padroeiro da Rússia foram emprestadas pelo Papa Francisco, pois elas ficam em Bari, na Itália, após marinheiros da cidade resgatá-las da ameaça maometana na Ásia Menor no primeiro milênio.
Putin no lugar do czar Pedro I, o Grande |
O segundo motivo é dar continuidade a Vladimir Putin como chefe supremo.
Prokhanov explica o que parece ser mais um script redigido por outrem em benefício desse mesmo outrem:
“Quem pode se tornar o arauto da nova dinastia russa? Não pode ser uma pessoa eleita por acaso.
“Não pode ser um representante de uma família nobre, ou de uma família distinta, ou da elite de hoje, ou alguém que o dedo do Patriarca apontará.
“Deve ser uma pessoa especial, marcada com um sinal especial, um mistério.
“E essa pessoa é Vladimir Putin.
“Ele disse que, com o retorno da Crimeia à Rússia, o cetro sagrado do governo russo havia retornado à Rússia.
“Ele tinha em mente Chersonese [cidade da Crimeia onde foi batizado na Igreja Católica São Vladimir, Príncipe de Kiev].
“Esse ato mágico e milagroso, místico, transferiu a santidade de Cristo para o estado russo.
“E a Crimeia, retornada à Rússia por Putin, transferiu essa santidade para o estado de Putin.
“Por esse ato, Putin carregava em suas mãos a fonte de misteriosa luz mística para a Rússia, o Kremlin, seu escritório, seus palácios.
“Ele foi escolhido para esse fim. Ele confirmou esta eleição. Ele se tornou ungido de uma forma muito especial.
“Ele não foi sagrado pelo Patriarca, sua unção não ocorreu na Catedral da Assunção, seu casamento com o reino não foi realizado na confluência dos chefes da Igreja.
“Aconteceu de uma maneira mística, misteriosa, quando a fonte de luz da Criméia Chersonese voltou para a Rússia em suas mãos.
“Ele se levantou com esta tocha, que o ilumina com uma luz misteriosa. Portanto, em círculos próximos ao patriarcado, em círculos conscientes da complexidade da restauração da monarquia na Rússia, seu nome como o possível primeiro monarca russo da dinastia Putin é cada vez mais citado”.
O Patriarcado de Moscou fará o que Putin mandar |
Ivan Artsishevsky, representante da Associação da Família Romanov (dos últimos czares da Rússia), ficou surpreso ouvindo representantes da Igreja Ortodoxa Russa falando de monarquismo.
O professor da Academia Teológica de São Petersburgo, arcipreste George Mitrofanov, falou dos perigos de restaurar a monarquia na Rússia atual. Mas o historiador Sergei Vivatenko defendeu as vantagens que haveria em reinstalá-la.
O comentário mais sóbrio, na opinião do diretor de cinema Slava Tsukerman, foi o do líder do Partido Monarquista Russo, Anton Bakov.
Bakov ressaltou que não há necessidade de perguntar à sociedade sobre a monarquia, porque alguém provavelmente tomará essa decisão de qualquer maneira.
Ele não disse quem poderia ser essa pessoa. Talvez não goste dela e descreveu essa tomada de decisão como um gesto despótico.
E assim deixou insinuado o nome que está na boca de todos.
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