O livro negro do comunismo


Stéphane Courtois, Nicolas Werth, Jean-Louis Panné, Andrzej Paczkowski, Karel Bartosek, Jean-Louis Margolin, “O livro negro do comunismo. Crimes, terror e repressão”, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1999, 917 págs. (título original: “Le livre noir du communisme. Crimes, terreur, repression”, Robert Laffont, Paris, 1997).



Revolução mundial,

guerra civil e terror

Stéphane Courtois e Jean-Louis Panné


1. O Komintern em ação. “Assim que subiu ao poder, Lênin sonhou propagar o incêndio revolucionário pela Europa e depois por todo o mundo. Inicialmente, esse sonho respondia ao famoso slogan do Manifesto do Parti­do Comunista, de Marx, em 1848: “Proletários de todos países, uni-vos!” À primeira vista, corres­pon­­dia também a uma neces­sidade imperiosa: a revolução bolchevique não poderia se manter no poder nem se desenvolver, se não estivesse protegida, apoiada e seguida por outras revoluções em países mais desen­­volvidos. (...) Essa necessidade conjuntural transformou-se rapidamente em um verdadeiro projeto político: a revolução mundial. (...) a revolução pareceu surgir esponta­nea­mente no rastro da derrota alemã e austro-húngara.” (pág. 322)
2. “No início de janeiro de 1919, os spartakistas, chefiados por Karl Liebknecht (...) tentaram uma insurreição em Berlim, sendo esmagados pelos militares sob as ordens do governo social-democrata. (...) O mes­mo aconteceu na Baviera, onde, em 13 de abril de 1919, um responsável do KPD, Eugen Levine, tomou a frente de uma República de Conselhos, nacionalizou os bancos e começou a formar um exército verme­lho. Essa Comuna de Munique foi esmagada militarmente em 30 de abril (...)
O exemplo mais célebre desse impulso revolucionário foi o da Hungria. (...) Tratou-se do primeiro caso em que os bolcheviques puderam exportar sua revolução. (...) Essa República durou 133 dias, de 21 de março a 1º de agosto de 1919. Logo na primeira reunião, os comissários decidiram criar tribunais re­vo­­lu­cionários, presididos por juízes escolhidos entre o povo. (...) Lênin, a quem Béla Kun havia saudado como o chefe do pro­letariado mun­dial, aconselhava o fuzilamento dos social-democratas e dos “pequeno-burgueses”; em sua mensa­gem aos operários húngaros, em 27 de maio de 1919, ele assim justificava o recurso ao terror: “Essa ditadura (do proletariado) implica o exercício de uma violência implacável, rápi­da e determinada, des­ti­nada a esmagar a resistência dos exploradores, dos capitalistas, dos grandes pro­prie­tá­rios rurais e seus partidários. Aquele que não compreendeu isto não é um revolucionário”.­ (...) Uma pro­clamação afixada em todas as paredes resumia o estado de espírito do momento: “Em um Estado pro­le­tário, só os que trabalham têm o direito a viver!” Trabalhar tornou-se obrigatório, as empresas com mais de 20 operários foram expropriadas, seguindo-se as de dez e até mesmo aquelas com menos de dez em­pregados. O exército e a polícia foram desmantelados, constituindo-se um novo exército formado por volun­tá­rios seguros do ponto de vista revolucionário. Pouco depois, seguiu-se a criação de uma “Tropa do Terror do Conselho Revolucionário do Governo”, também conhecida como os “Rapazes de Lênin”. (...) obe­de­ciam às ordens de um antigo marinheiro, Jozsef Czerny, que recrutava seus servidores entre os co­mu­nis­tas mais radicais, sobretudo prisioneiros de guerra que tinham participado da Revolução Russa”. (págs. 323-324).
3. “As últimas semanas da Comuna de Budapeste foram caóticas. Béla Kun teve de enfrentar uma tentativa de golpe (...) No dia 1º de agosto de 1919, ele deixou Budapeste sob a proteção de uma missão militar italiana; no verão de 1920 ele refugiou-se na URSS, onde, recém-chegado, foi nomea­do comissário político do Exército Vermelho, no fronte sul, notabilizando-se então por ter ordenado a execução dos oficiais de Wrangel, que se renderam ante a promessa de serem poupados.” (págs. 324-325)
4. “Komintern e guerra civil. (...) Lênin tomou a iniciativa de criar uma organização internacional sus­ce­tí­vel de levar a revolução ao mundo inteiro. A Internacional Comunista — também denominada Komintern, ou ainda Terceira Internacional — foi fundada (...) durante a realização de seu II Congresso, no verão de 1920, com a adoção de 21 condições de admissão, às quais os socialistas que desejassem aderir deveriam submeter-se, integrando assim uma organização extremamente centralizada — ”o estado-maior da revolução mundial” (...)
O manifesto adotado no II Congresso anun­cia­va orgulhosamente: “A Internacional Comunista é o partido internacional da insurreição e da ditadura do proletariado”. Como conseqüência, a ter­ceira das 21 condições decretava: “Em quase todos os países da Europa e da América, a luta armada entra num período de guerra civil. Nessas condições, os co­mu­nis­tas não podem confiar na legalidade bur­gue­sa. É seu dever criar em todos os lugares, parale­la­men­te à orga­ni­zação legal, um organismo clandes­ti­no capaz de, nos momentos decisivos, cumprir com o seu dever para com a revolução”. Fórmulas eufe­mís­ti­cas: o “momento decisivo” era a insurreição revolu­cio­ná­ria, e o “dever para com a revolução” era a obrigação de se engajar na guerra civil. (...)
A 13ª condição considerava o caso dos militantes que não fossem “unânimes”: o Partido Comunista [...] deve proceder à depuração periódica das suas organizações, a fim de afastar os elementos interesseiros e pequeno-burgueses”.
Durante o III Congresso, reunido em Moscou em junho de 1921, com a participação de vários parti­dos comunistas já constituídos, as orientações foram ainda mais precisas. A “Tese sobre a tática” indica­va: “O Partido Comunista deve inculcar nas mais vastas camadas do proletariado, através da ação e da pala­vra, a idéia de que todo conflito econômico ou político pode, em uma conjuntura favorável, trans­for­mar-se em guerra civil, durante a qual a tarefa do proletariado será a de tomar o poder político”. E as “Teses sobre a Estrutura, os Métodos, e a Ação dos Partidos Comunista” discorriam longamente sobre as ques­tões da “sublevação revolucionária aberta” e da “organização de combate” que cada partido comu­nis­ta deveria criar secretamente no interior de sua organização; as teses especificavam que esse trabalho prepa­ratório era indispensável, uma vez que “não seria esse o momento adequado para a formação de um Exército Vermelho regular”. (págs. 326-327)
5. “a vez de a República da Estônia (...) dia 27 de outubro de 1917, um Conselho de Sovietes havia tomado o po­der em Tallin, dissol­ven­do a Assembléia e anulando as eleições desfavoráveis aos comunistas. Diante da ameaça do corpo expe­dicionário alemão, os comunistas bateram em retirada. (...) A ocupação alemã durou até novembro de 1918. (...) os comunistas retomaram bem depressa a inicia­tiva: em 18 de novem­bro, foi constituído um governo em Petrogrado, e duas divisões do Exército Ver­melho invadiram a Estônia. (...) o avanço das tropas soviéticas, que já se encon­tra­vam a apenas 30 quilômetros da capital, foi deti­do por um contra-ataque estoniano. A segunda ofensiva redundou igualmente em fracasso. (...) Nas loca­lidades já ocupadas, os bolcheviques passaram à pratica de chacinas: em 14 de janeiro de 1920, em Tartu, na véspera de sua retirada, eles assassinaram 250 pessoas, e mais de mil no distrito de Rakvere. Logo após a libertação de Wesenberg, em 17 de janeiro, foram abertas três valas comuns (86 cadáveres). Em Dorpad, os reféns fuzilados em 26 de dezembro de 1919 haviam sido torturados: braços e pernas extir­pados, e, às vezes, olhos perfurados. Em 14 de janeiro, antes da fuga, os bolcheviques só tiveram tempo de executar 20 pessoas, entre as quais o arcebispo Platon, das 200 que estavam sendo mantidas co­mo prisioneiras. Mortas com golpes de machado e coronhadas — um oficial foi encontrado com as dra­go­nas do uniforme cravadas em seu corpo com pregos! —, as vítimas eram dificilmente identificáveis.” (págs. 328-329)
Resumo: os fracassos foram a regra: Albânia, Bulgária, e até na China onde Chiang Kai-shek, líder do parti­do nacionalista Kuomintang, “se beneficiava de uma importante ajuda material da parte dos soviéticos” (pág. 331).
6. “Todos os partidos comunistas, incluindo os legais e os per­ten­centes a repúblicas democráticas, mantiveram em seu interior a existência de um “aparelho militar” secreto, capaz de vir a público quando fosse a ocasião.” (pág. 333)
7. “Na França, onde o clima político era mais calmo, o Partido Comunista Francês (PCF) também criou seus quadros armados ... (pág.334)
8. “Em 1931, o Komintern publica, em várias línguas, um livro intitulado L'Insurrection Armée, assinando com o pseudônimo Neuberg — tratava-se, na realidade, de responsáveis soviéticos —, que abordava as dife­rentes experiências insurrecionais a partir de 1920. ­(...) Por mais surpreendente que possa parecer, alguns jovens quadros de confiança do Partido Comu­nis­ta Francês ainda continuavam, no começo dos anos 70, um treinamento na URSS (tiro, montagem e desmontagem de armas, fabricação de armas artesanais, transmissões, técnicas de sabotagem) com as Spetsnaz, as tropas soviéticas especiais postas à disposição dos serviços secretos. Inversamente, o GRU dispunha de especialistas militares que poderiam ser emprestados aos partidos-irmãos em caso de necessidade. Manfred Stern, por exemplo, o austro-húngaro que, colocado no “M-Apparat” do KPD para a insurreição de Hamburgo de 1923, operou posteriormente na China e na Manchúria, antes de tornar-se o “general Kleber'' da Brigadas Internacionais na Espanha.
Esses aparelhos militares clandestinos não eram propriamente formados por “meninos de coro”. Os seus membros estavam por vezes no limite do banditismo, e alguns desses grupos transformaram-se em verdadeiros bandos.
Simultaneamente, em fins de 1923, (...) houve um reforço da sua obediência ao centro moscovita. (...) As reações da direção do PCF mostram claramente qual era o estado de espírito exigido a partir de então nas fileiras do Partido Mundial: “No nosso Partido [o PCF], que a luta revolucionária não expur­gou totalmente do velho fundo social-democrata, a influência das personalidades desempenha ainda um papel demasiado importante. [...] Será somente a partir da destruição de todas as sobrevi­vên­cias pequeno-burguesas do 'Eu' individualista que se formará a anônima falange de ferro dos bolchevi­ques franceses. [...] Se ele quer ser digno da Internacional Comunista à qual ele pertence, se ele quer seguir os passos gloriosos do Partido russo, o Partido Comunista Francês deve romper, sem hesitação, com todos aqueles que, em seu interior, se recusarem a submeter-se a sua lei!” (L'Humanité, 19 de julho de 1924.) O redator anônimo ignorava que ele acabara de enunciar a lei que regeria a vida do PCF duran­te décadas. O sindicalista Pierre Monatte resumiu essa evolução em uma palavra: a “militarização” do PC.” (págs. 340-341)
Resumo: a “bolchevização” do Komintern deu numa “raiva paranoica, num zelo frenético de mostrar-se como o mais vigilante dos comunistas” (pág. 348). Os membros da Komintern denunciavam-se uns aos outros. O mesmo faziam os membros do PCs ante a Komintern. Os relatórios acumulavam-se às centenas. Os próprios chefes da Komintern não foram poupados pelos expurgos internos. O Komintern perdeu a maior parte dos seus membros no terror. O estrago foi generalizado em todos os órgãos que trabalhavam para a exportação da Revolução. Por fim, Stalin assinou acordos com Hitler. Como mostra de sinceridade entregou judeus e militantes comunistas à Gestapo.
9. “A guerra, a interdição do PCF, que defendia a aproximação germano-soviética, e a ocupação alemã le­varam o Partido a reforçar as suas tendências policiais. Foram denunciados os militantes que haviam se recusado a apoiar a aliança Hitler-Stalin, incluindo os que se juntaram à resistência, (...) Jules Fourrier, que a “polícia do Partido” tentou, sem sucesso, liquidar; (...) a partir do fim de 1940, participou da criação de uma rede de resistência; foi deportado para Buchenwald e mais tarde para Mauthausen. (...)
Em plena caça aos judeus, o PC usava de estranhos métodos para denunciar os seus “inimi­gos”: “C... Renée, dita Tania, ou dita Thérèse, do XIV bairro de Paris, judia da Bessarábia”, “De B... judeu estrangeiro. Renegado, difama o PC e a URSS”. A mão-de-obra de imigrantes (MOI), organização que reunia os militantes comunistas estrangeiros, recorreu a uma linguagem não menos característica: “R. Judeu (não é o seu verdadeiro nome). Trabalha com um grupo judeu inimigo. (...) É bastante provável que, durante as prisões, a polícia de Vichy ou a Gestapo con­se­guiu pôr as mãos nessas listas. O que aconteceu às pessoas então denunciadas?” (págs. 346-347)
10. “No dia 31 de dezembro de 1939, fomos acordados às seis da manhã (...). Um judeu comunista húngaro, chamado Bloch, que havia fugido para a Alemanha após o insucesso da Comuna de 1919, vivia ali com documentos falsos, continuando a sua militância em favor do Partido. Mais tarde, utilizando-se dos mes­mos documentos falsos, ele havia emigrado. (...) ele também foi entregue à Gestapo alemã. (...) Durante a noite de 31 de dezembro de 1939 para 1º de janeiro de 1940, o trem pôs-se em marcha (...) até Brest-Litovsk. Na ponte do rio Bug, estávamos sendo esperados pelo aparelho do outro regime totalitário da Europa, a Gestapo alemã.” [testemunho de Alexandre Weissberg, L'Accusé, Fasquelle, 1953.)
“Três pessoas se recusaram a atravessar essa ponte, a saber: um judeu húngaro chamado Bloch, um operário comunista condenado pelos nazistas e um professor alemão de cujo nome não consigo me lembrar. Eles foram levados à força para a ponte. A raiva dos nazistas, dos SS, abateu-se imediatamente sobre o judeu. (...) Verificamos então que não somente o NKVD nos entregara à Gestapo, como haviam sido entregues os documentos que nos diziam respeito.” [Margarete Buber-Neumann, “Deposição no Proces­so Kravehenko contra Les Lettres Françaises, 14ª audiência, 23 de fevereiro de 1949. Resumo estenografado.]” (pág. 357).
11. Louis Aragon, Prelúdio ao Tempo das Cerejas
Eu canto a GPU que se forma
na França agora mesmo
Eu canto a GPU necessária da França
Eu exijo uma GPU para preparar o fim de um mundo (...)
Viva a GPU verdadeira imagem da grandeza materialista
Viva a GPU contra o papa e os piolhos
Viva a GPU contra as manobras do Leste
Viva a GPU contra a família
VIVA A GPU. (1931)
[Citado por Jean Malaquais, Le nommé Louis Aragon ou le patriote proffesionnel suplemento a Masses, fevereiro de 1947.] (págs. 362-363)
12.Anti-fascistas e revolucionários estrangeiros vítimas do terror na URSS. (...) em meados dos anos 30, vivia na Rússia um grande número de estrangeiros que, mesmo sem ser comunistas, haviam sido atraídos pela miragem soviética. Muitos deles pagaram com a liberdade, e por vezes com a vida, o preço dessa paixão pelo país dos sovietes.
No início dos anos 30, os soviéticos conduziram uma campanha de propaganda sobre a Carélia, (...) Quase 12 mil pessoas deixaram a Finlândia, acrescidos de cerca de cinco mil finlandeses vindos dos Estados Unidos (...) os agentes da Amtorg (agência comercial soviética) lhes prometiam trabalho, bons salários, alojamento e viagem gratuita de Nova York a Lêningrado. Recomendava-se aos interessados que levassem tudo o que possuíssem. A “corrida para a utopia” (...) transformou-se em pesadelo. Desde a sua chegada, as máquinas, as ferramentas e as economias desses imigrantes foram confiscadas. Obrigados a entregar os passaportes, eles se viram como prisioneiros em uma região subdesenvolvida, onde predominava a floresta, em condições de subsistência particularmente duras. (...) pelo menos 20 mil finlandeses foram encarcerados em campos de concentração. (...)
os armênios (...) Respondendo à convocação de Stalin, (...) em setembro de 1947, vários milhares deles se reuniram no porto de Marselha. Três mil e quinhentos embarcaram no Rossia, que os trans­por­tou para a URSS. Assim que o navio transpôs a linha imaginária que demarcava as águas territoriais sovié­ti­cas no Mar Negro, a atitude das autoridades soviéticas mudou repentinamente. Muitos então compreenderam a armadilha odiosa em que tinham caído. Em 1948, duas centenas de armênios chegaram dos Estados Unidos. Acolhidos em clima de festa, eles tiveram a mesma sorte: os seus passaportes foram confiscados logo na chegada. (...)
Na URSS, em meados dos anos 30, viviam cerca de 600 comunistas e simpatizantes italianos: perto de 250 quadros políticos emigrantes e 350 alunos que freqüentavam cursos nas três escolas de formação política. Como muitos desses alunos deixaram a URSS após o término de seus estudos e uma centena de militantes partiram para lutar na Espanha, em 1936 e 1937, o Grande Terror abateu-se sobre os que ficaram. Cerca de 200 italianos foram presos, geralmente “por espionagem”; 40 foram fuzilados — dos quais 25 foram identificados; os restantes foram enviados ao Gulag, tanto para as minas de ouro de Kolyma quanto para o Cazaquistão.” (págs. 368-370)
13. “Diante do avanço do exército alemão, vários judeus poloneses haviam fugido para o leste. Durante o inverno de 1939-1940, os alemães não tentaram interditar a passagem pela nova fronteira. Mas os que ten­tavam a sua sorte tinham de enfrentar um obstáculo inesperado: “Os guardiões soviéticos do 'mito de classe', envergando longos sobretudos e barretes de peles, de baioneta erguida, recebiam os nômades que procuravam a Terra Prometida com cães policiais e rajadas de metralhadora.” De dezembro de 1939 a março de 1940, os judeus permaneceram encurralados numa terra de ninguém, de um quilômetro e meio de largura, na margem oriental do rio Bug, obrigados a acampar a céu aberto. A maioria regressou à zona alemã.
Em março de 1940, várias centenas de milhares de refugiados — há quem avance o número de 600 mil — viram lhes ser imposto um passaporte soviético. Os acordos sovieto-nazistas previam uma troca de refugiados. Com as famílias separadas, a penúria e o terror policial exercido pelo NKVD se agravando a cada dia, alguns decidiram regressar ao lado alemão da antiga Polônia. Jules Margoline, que se encontrava em Lvov, na Ucrânia Ocidental, relata que na primavera de 1940 os “judeus preferiam o gueto alemão à igualdade Soviética”.
No começo de 1940, as deportações começaram a atingir os cidadãos poloneses (...) o trem em que viajava Jules Margoline levou dez dias para chegar a Murmansk. Excelente observador da sociedade dos campos de concentração, Margoline escreveu: “O que distingue os campos soviéticos de todos os outros locais de detenção existentes no mundo não são apenas as suas extensões imensas, inimagináveis, nem as suas mortíferas condições de vida. É a necessidade de mentir incessantemente para salvar a vida, mentir sempre, usar uma máscara durante anos e nunca poder dizer o que se pensa. Na Rússia soviética, os cidadãos 'livres' são igualmente obrigados a mentir. [...] Assim, os únicos meios de autodefesa são a dissimulação e a mentira. Os comícios, as reuniões, os encontros, as conversas, os jornais em murais são envolvidos por uma fraseologia oficial que não contém uma só palavra verdadeira. O homem do Ocidente muito dificilmente compreenderá o que significa a privação do direito e a impossibilidade, durante cinco ou dez anos, de se exprimir livremente, a obrigação de reprimir o menor pensamento 'ilegal' e de ficar mudo como um túmulo. Sob essa incrível pressão, toda a substância interior de um indivíduo se deforma e desagrega.”
No inverno de 1945-1946, o Dr. Jacques Pat, secretário do Comitê Operário Judeu dos Estados Unidos, foi à Polônia com a missão de concluir um inquérito sobre os crimes nazistas. (...) Segundo ele, 400.000 judeus poloneses teriam morrido deportados, nos campos ou em colônias de trabalhos forçados. No fim da guerra, 150.000 escolheram reaver a nacionalidade polonesa, para fugirem da URSS.” (págs. 375-377)
14.O regresso forçado à URSS dos prisioneiros soviéticos. (...) ser prisioneiro durante quatro anos fora do território nacional fazia de um militar russo detido pelos alemães um traidor merecedor de castigo; o Decreto nº 270, de 1942, que alterava o Código Penal, parágrafo 193, declarava que um prisioneiro capturado pelo inimigo era ipso facto um traidor. Pouco importavam as condições em que a captura se dera e o modo como o cativeiro havia decorrido (...)
Stalin (...) decidiu pedir o repatriamento de todos os russos que se encontrassem na zona ocidental. Não houve qualquer problema na satisfação desse pedido. Desde o fim de outubro de 1944 até janeiro de 1945, mais de 332.000 prisioneiros (dos quais 1.179 de São Francisco) foram repatriados, contra a sua vontade, para a União Soviética. Os diplomatas britânicos e americanos não só não tinham quaisquer problemas de consciência relativamente a essa atitude, como falavam a respeito dela com uma certa dose de cinismo, pois não ignoravam, como Mr. Antony Eden, que seria preciso o uso da força para “resolver” a questão.
Por ocasião das negociações de Yalta (5 a 12 de fevereiro de 1945), os três protagonistas (sovié­ti­cos, ingleses e americanos) concluíram acordos secretos que incluíam tanto os soldados como os civis deslo­ca­dos. Churchill e Eden aceitaram que Stalin decidisse a sorte dos prisioneiros que haviam combatido nas fileiras do Exército Russo de Libertação (ROA), comandados pelo general Vlassov, como se esses homens pudessem se beneficiar de um julgamento minimamente justo. (...)
Assinados os acordos de Yalta, não foi preciso uma semana para que vários comboios partissem em direção à URSS. Em dois meses, de maio a julho de 1945, foram “repatriados” mais de 1.300.000 indiví­duos que se encontravam nas zonas ocidentais de ocupação e que Moscou considerava soviéticos (esta­vam incluídos os bálticos, anexados em 1940, e os ucranianos). No final de agosto, mais de dois milhões desses “russos” haviam sido “devolvidos”. Por vezes em condições atrozes: os suicídios individuais ou coletivos (famílias inteiras) e as mutilações tomaram-se freqüentes; no momento de serem entregues às autoridades soviéticas, os prisioneiros tentaram inutilmente opor uma resistência passiva, e os anglo-americanos não hesitaram em recorrer à força para satisfazer as exigências soviéticas. Logo durante a chegada, os repatriados ficavam sob o controle da polícia política. No próprio dia em que o Almanzora chegou a Odessa, em 18 de abril, houve várias execuções sumárias. O mesmo aconteceu quando o Empire Pride aportou no Mar Negro. (págs. 378-379)
15. “Essa política perfeitamente consciente dos ocidentais não teve sequer como conseqüência a facilitação do regresso dos seus próprios cidadãos. Pelo contrário, permitiu à URSS enviar um sem-número de funcionários em busca de recalcitrantes e agir à margem das leis das nações aliadas.
Quanto aos franceses, o Bulletin do governo militar da Alemanha afirmava que, no dia 1º de outubro de 1945, 101.000 “pessoas deslocadas” haviam sido reenviadas para o setor soviético. Na própria França, as autoridades aceitaram a criação de 70 campos de reunião que muitas vezes se beneficiavam de uma estranha extra-territorialidade, como o de Beauregard, um subúrbio parisiense, sobre o qual renunciaram a exercer qualquer tipo de controle, deixando que os agentes soviéticos do NKVD operassem na França com uma impunidade lesiva à soberania nacional. O planejamento dessas operações fora cuidadosamente amadurecido pelos soviéticos (...) O campo de Beauregard só viria a ser fechado em novembro de 1947 pela Direção de Segurança do Território, como conseqüência do rapto de crianças disputadas entre pais divorciados. Roger Wybot, que dirigiu a operação, observou: “Na realidade, com os elementos que pude obter, esse campo de trânsito mais parecia um campo de seqüestro.” (págs. 379-380)
16.Os inimigos prisioneiros. A URSS não ratificara as Convenções Internacionais sobre os prisioneiros de guerra (Genebra, 1929). Em teoria, os prisioneiros estavam protegidos pela convenção, mesmo no caso de o seu país não a ter assinado. Na URSS, essa disposição não tinha qualquer valor. Vitoriosa, ela conser­va­va de três a quatro milhões de prisioneiros alemães. Entre eles, contavam-se soldados libertados pelas potên­cias ocidentais que, uma vez regressados à zona soviética, haviam sido deportados para a URSS.
Em março de 1947, Viatcheslav Molotov declarou que um milhão de alemães (exatamente 1.003.974) haviam sido repatriados, restando ainda 890.532 nos campos do seu país. Esses números foram contestados. Em março de 1950, a URSS declarou que o repatriamento dos prisioneiros estava con­cluí­do. No entanto, as organizações humanitárias advertiram que pelo menos 300.000 prisioneiros ti­nham ficado retidos na URSS, bem como 100.000 civis. (...) Uma estimativa feita por uma comissão especial (a Comissão Maschke) revelou que um milhão de soldados alemães presos na URSS morreram nos campos. Assim, dos 100.000 prisioneiros feitos pelo Exército Vermelho em Stalingrado, só sobreviveram cerca de 6.000.
Do lado alemão, em fevereiro de 1947 estavam vivos cerca de 60.000 soldados italianos (...). O gover­no italiano informou que apenas 12.513 desses prisioneiros haviam regressado à Itália até aquela data. É preciso igualmente assinalar que os prisioneiros romenos e húngaros que tinham combatido na frente russa conheceram situações análogas. Em março de 1954, foram libertados cem voluntários da divisão espanhola “Azul”. Essa visão geral não ficaria completa se não citássemos os 900.000 soldados japoneses aprisionados na Manchúria, em 1945.” (págs. 380-381)
17.As crianças gregas e o Minotauro soviético. Durante a guerra civil de 1946-1948, os comunistas gregos efe­­tuaram, nas zonas que controlavam, um recenseamento de todas as crianças, de ambos os sexos, dos três aos 14 anos. Em março de 1948, essas crianças foram reunidas nas regiões fronteiriças e levadas aos milha­­­res para a Albânia, para a Iugoslávia e para a Bulgária. (...) Com muita dificuldade, a Cruz Verme­lha arrolou 28.296 crianças seqüestradas. No verão de 1948, consumada a ruptura entre Tito e o Komin­tern, uma parte das crianças (11.600) retidas na Iugoslávia foi­ (...) transferida para a Tchecoslováquia, para a Hungria, para a Romênia e para a Polônia. No dia 17 de no­vem­bro de 1948, a Terceira Assembléia da ONU tomou a resolução de condenar o rapto das crianças gre­gas. (...) Todas as de­ci­sões seguintes toma­das pela ONU ficaram, como as anteriores, sem resposta: os regimes comunistas vizinhos se obsti­navam em fazer crer que essas crianças tinham melhores condições de vida entre eles do que na própria Grécia; chegaram mesmo a querer dar a entender que a deportação tinha sido um gesto humanitário.
Entretanto, o exílio forçado dessas crianças continuou, em tais condições de miséria, de subali­men­tação e de epidemias, que muitas morreram. Reunidas em “povoados para crianças”, elas eram obrigadas a participar de cursos de politização, além da escolaridade normal. A partir dos 13 anos, tinham de exe­cu­tar trabalhos pesados, como, por exemplo, o desbravamento das regiões pantanosas de Hartchag, na Hun­gria. O que estava por trás dessa jogada comunista era a formação de uma nova geração de mili­tan­tes totalmente devotados. (...) Entre 1950 e 1952, apenas 684 crianças regressaram à Grécia. Em 1963, cera de quatro mil crianças (algumas nascidas em países comunistas) tinham sido repatriadas.” (págs. 390-391)






A sombra do NKVD 

sobre a Espanha

Stéphane Courtois e Jean-Louis Panné

Resumo: no governo da Frente Popular, “o embaixador soviético Marcel Israelevich Rosenberg (...) impôs-se como uma espé­cie de vice-primeiro-ministro, com participação ativa no Conselho de Ministros; ele era detentor de um triunfo consi­derável, uma vez que a URSS estava disposta a fornecer armas aos republicanos” (pág. 395). O objetivo era levar o PCE ao poder, instaurar os métodos soviéticos e “a onipresença do sistema policial e a liquidação de todas as for­ças não comunistas” (pág. 396). Inicialmente, Stalin não deu importância à Guerra da Espanha, criando perplexi­da­de entre os seus assistentes mais próximos. Por fim, a Rússia concentrou o envio de agentes na Catalhunha, donde fun­­cio­­na­va camuflada uma dependência do NKVD. “a URSS não concedia crédito aos republicanos, sendo que as armas tinham de ser pagas antecipadamente à custa das reservas de ouro do Banco da Espanha, que os seus agentes conseguiam transferir clandestinamente para a URSS; cada entrega de armas era uma oportunidade de chantagem explorada pelos comunistas” (pág. 401)
Os agentes russos livraram uma verdadeira guerra no seio das forças da esquerda, com chekas, expurgos, to­r­tu­ras, terror, assassinatos, etc. Nos arquivos de Moscou encontram-se dezenas de milhares de informes sobre a orto­do­xia dos membros da Brigadas internacionais, entretanto criadas por Moscou e formando um exército comunista.
18. “Durante a guerra civil, foram enviadas para a URSS milhares de crianças espanholas com idades com­pre­en­didas entre os 5 e os 12 anos. (...) Em 1939, os professores espanhóis foram acusados de “trotskis­mo” e, segundo El Campesino, 60% deles foram detidos e aprisionados na Lubianka, sendo os restantes en­viados para uma fábrica. Uma jovem professora foi torturada durante 20 meses antes de ser fuzilada. As crianças conheceram então uma sorte pouco invejável, (...) em 1941, segundo Jesus Hernández, 50% haviam contraído tuberculose, e 750 (ou seja, 15%) morreram antes do êxodo verificado nesse mesmo ano. Nos Urais e na Sibéria Central, especialmente em Kokand, os adolescentes descontrolaram-se. Forma­ram bandos que se dedicavam ao roubo, e as moças se prostituíam. Alguns cometeram suicídio. Ainda segundo Jesús Hernández, morreram 2.000 crianças, dum total de 5.000. (...) feitas as contas, apenas 1.500 voltaram a casa.
(...) 218 jovens aviadores que che­ga­ram em 1938 para um estágio de formação de seis a sete meses em Kirovabad. No fim de 1939, o coronel Martínez Carton, membro do Bureau Político do PCE e agente do NKVD, impôs-lhes uma escolha: ficar na URSS ou partir para o estrangeiro. Os que preferiram deixar a URSS foram de imediato enviados para fábricas. Em 19 de setembro de 1939, foram todos presos e foi instaurado um processo contra eles. Alguns foram torturados, outros executados na Lubianka, e a maior parte condenada a dez ou 15 anos de campo. Do grupo enviado para Petchoraliev, não restou um único sobrevivente. Em resumo, dos 218 aviadores, só uma meia dúzia sobreviveu”. (págs. 415-416)








A OUTRA EUROPA 

VÍTIMA DO COMUNISMO

Andrzej Paczkowski e Karel Bartosek

Resumo: esta parte é genérica. Apenas fornece dados sobre alguns dos países ocupados após o fim da II Guerra Mundial. O primeiro país analisado é a Polônia, da qual fornece basicamente os mesmos dados da parte sobre a Rússia.
19. “Extrato de Tríptico Kazaque: Memórias de Deportação (Varsóvia, 1992)
Lucyna Dziurzynska-Suchon: “Lembro-me de um dos momentos mais dramáticos da nossa vida. Du­rante vários dias não tínhamos comido nada, literalmente nada. Era inverno. A cabana estava toda cober­ta de neve. Apenas podíamos sair graças a um túnel escavado por alguém do exterior [...]. Mamãe pôde ir trabalhar. Tinha tanta fome quanto nós. Ficávamos deitados numa cama miserável, encostados uns aos outros para termos um pouco de calor. Pequenas luzes cintilavam em nossos olhos. Já não tínha­mos forças para nos levantarmos. O frio era intenso, mesmo lá dentro [...]. Passávamos o tempo adorme­ci­dos. O meu irmão acordava de tempos a tempos e gritava: 'Tenho fome' e 'Mamãe, estou morrendo'. Ele não conseguia dizer mais nada. A nossa mãe chorava. Foi pedir ajuda nas cabanas vizinhas, aos nossos amigos. Sem resultado. Começamos a rezar... 'Pai Nosso...' E talvez tenha acontecido um milagre. Uma amiga, vizinha, apareceu com uma mão cheia de farinha de trigo...” (págs. 438-439)
20.O NKVD contra a Armia Krajowa (Exército Nacional). Na noite de 4 para 5 de janeiro de 1944, os pri­mei­ros tanques do Exército Vermelho cruzaram a fronteira entre a Polônia e a URSS, estabelecida em 1921. A re­sistência polonesa previa que, à medida que o AK (Exército Nacional) se aproximasse da frente, mobi­li­zaria a população, desencadearia o combate contra os alemães e, após a chegada do Exército Vermelho, viria ao seu encontro como autoridade legítima. A operação recebeu o nome de código “Burza” (“Tempes­ta­de”). Os primeiros combates foram travados no fim de março de 1944, em Volhynie, onde o comandante da divisão do AK lutou lado a lado com as unidades soviéticas. Porém, em 27 de maio, algumas das unidades do AK foram forçadas pelo Exército Vermelho a depor suas armas, o que obrigou o grosso dos efetivos da divisão a recuar em direção à Polônia, ao mesmo tempo que combatia os alemães.
Esta atuação dos soviéticos — primeiro cooperação a nível local, seguida de desarmamento forçado dos poloneses está confirmada também em outros casos. Os acontecimentos mais espetaculares ocorreram na região de Vilnius. Alguns dias depois do fim dos combates, chegaram contingentes das Unidades Internas do NKVD e (conforme a Ordem nº 220-145 emitida pelo Comando-Geral) conduziram uma operação de desarmamento dos soldados do AK. Segundo relatório recebido por Stalin, em 20 de julho, mais de 6.000 resistentes foram presos, enquanto cerca de 1.000 conseguiram fugir. O estado-maior dessas unidades de resistência polonesas foi preso. Os oficiais foram encarcerados em campos do NKVD, que ofereceu aos soldados a escolha entre o aprisionamento ou a integração ao exército polonês constituído sob a égide dos soviéticos e comandado pelo general Zygmunt Berling. As unidades do AK que participaram na libertação de Lvov tiveram o mesmo destino.
Em 1º de agosto de 1944 os comandantes do AK desencadearam a insurreição em Varsóvia, cuja tomada fora planejada pelo Exército Vermelho (frente da Bielo-Rússia) para 8 de agosto. Stalin deu ordem para que a ofensiva fosse suspensa, já com o Vístula transposto ao sul de Varsóvia, e deixou os alemães aniquilarem os revoltosos, que resistiram até 2 de outubro.
A oeste da linha de Curzon, onde o AK mobilizara entre 30.000 e 40.000 soldados e libertara numerosas pequenas localidades, as unidades do NKVD e do SMERSCH (a contra-espionagem militar) e unidades de filtragem procederam de forma idêntica, obedecendo à Ordem nº 220169, de 1º de agosto de 1944, oriunda do comando supremo das operações militares. Segundo relatório datado de outubro e que resume a execução da diretiva, cerca de 25.000 militares do AK, entre eles 300 oficiais, foram desarmados, presos e depois encarcerados.
(...) Os oficiais e soldados que se recusaram a combater no exército de Berling foram enviados, como os seus camaradas de Vilnius e Lvov, para os confins do Gulag. O número exato dos participantes na operação “Burza”, que foram aprisionados pelos soviéticos, continua até hoje desconhecido. As estimativas variam entre 25.000 e 30.000 soldados.” (págs. 440-442)
21. “As populações civis começaram por sofrer “expurgos nacionais” que se revestiram nesta região de um caráter específico com a chegada do Exército Vermelho, o “punho armado” do regime comunista. Comissários políticos e serviços especiais desse exército — o SMERSCH e o NKVD — empenharam-se a fundo numa depuração, sobretudo nos Estados que haviam enviado tropas para a frente de guerra contra a União Soviética — Hungria, Romênia e Eslováquia. Centenas de milhares de pessoas foram deportadas, dessa vez para o Gulag soviético (os números exatos encontram-se ainda em fase de avaliação).
Segundo estudos recentes (...) teriam sido deportadas centenas de milhares de pessoas, soldados e civis, entre os quais crianças de 13 anos e velhos de 80: cerca de 40.000 da Ucrânia subcarpática, pertencente à Tchecoslováquia, ocupada pela Hungria depois dos acordos de Munique em 1938 e anexada de fato pela União Soviética em 1944. Na Hungria — com cerca de nove milhões de habitantes —, teriam sido deportadas nessa época mais de 600.000 pessoas, apesar de as estatísticas soviéticas mencionarem apenas 526.604. Esse número foi estabelecido após a chegada aos campos e não considerava os mortos nos campos de trânsito (...)
Apenas uma parte das depurações era gerida pelos tribunais, “populares” e “de exceção”; no fim da guerra e nos primeiros meses do pós-guerra, dominou uma perseguição extrajudiciária, com um grau de violência — execuções, assassinatos, torturas e tomada de reféns — permitido pela ausência ou pelo desrespeito da lei e das convenções internacionais sobre prisioneiros de guerra e populações civis. O caso da Bulgária, naquele momento com sete milhões de habitantes, é exemplar. Logo após o dia 9 de setembro de 1944, data da tomada do poder pela Frente Patriótica e da entrada do Exército Vermelho no país, entraram em funcionamento a milícia popular e a Segurança de Estado, controladas pelos comunistas. Em 6 de outubro, um decreto instituiu “tribunais populares”. Em março de 1945, esses tribunais já haviam pronunciado 10.897 veredictos em 131 processos e condenado à morte 2.138 pessoas, entre as quais os regentes (um deles o irmão do rei Boris III), a maior parte dos membros do Parlamento e dos governos do período pós-1941, oficiais superiores, policiais, juízes, industriais e jornalistas. No entanto, segundo vários especialistas, foi a “depuração selvagem” a responsável pela maior parte das vítimas: entre 30.000 e 40.000 pessoas, na sua maioria personalidades locais, presidentes de câmara, professores, popes e comerciantes. Em 1989, graças a testemunhas que já não tinham medo de falar, começaram a ser descobertas valas comuns, repletas de cadáveres, cuja existência era até então desconhecida.” (págs. 464-465).
22. “Raramente, no decorrer da história, a instalação de um novo poder foi precedida por um banho de sangue como na Iugoslávia (cerca de um milhão de vítimas para um país com uma população de 15,5 milhões de habitantes); múltiplas guerras civis, étnicas, ideológicas e religiosas fizeram então mais mortos do que a guerra — eficaz e apreciada pelos Aliados — contra os ocupantes ou contra a repressão exercida por eles, cuja principal vítima foi, em determinadas regiões, a própria população civil: na sua maioria mulheres, crianças e idosos. Essa guerra, verdadeiramente fratricida e com alguns aspectos de genocídio — guerra em que um irmão combateu o próprio irmão —, desembocou numa “depuração” tal que, na ocasião da Libertação, quase não restavam no interior do país rivais políticos dos comunistas ou do seu chefe Tito quem, diga-se de passagem, dedicou-se a sua rápida eliminação. Evolução idêntica verificou-se na vizinha Albânia, aliás, com a ajuda dos comunistas iugoslavos.” (pág. 468)
23. “A aplicação do modelo bolchevique foi mais difícil em certos países do que em outros que conheciam a tradição da Igreja Ortodoxa, a tradição bizantina do césaro-papismo, tendendo para a colaboração da Igreja com o poder estabelecido (...) No caso da Igreja Católica, a sua organização internacional, dirigida a partir do Vaticano, representava um fenômeno insuportável para o “campo socialista” emergente. A confrontação entre as duas grandes Internacionais da fé, com as suas duas capitais, Moscou e Roma, era, portanto e logicamente, fatal. A estratégia de Moscou estava bem-definida: romper os laços existentes entre as Igrejas Católica ou Greco-Católica e o Vaticano, submetendo-as ao poder e transformando-as em Igrejas “nacionais”. É o que deixam entender as consultas com os responsáveis soviéticos quando da reunião do Bureau de Informação dos Partidos Comunistas, em junho de 1948, relatada por Rudolf Slansky, secretário-geral do PCT.
Para atingir o seu objetivo — a redução da influência das Igrejas sobre a vida social, submetê-las ao controle meticuloso do Estado e transformá-las em instrumento da sua política —, os comunistas combinaram repressão, tentativas de corrupção e... limpeza da hierarquia; a abertura de arquivos permitiu desmascarar, por exemplo, na Tchecoslováquia, numerosos eclesiásticos, principalmente bispos, como colaboradores da polícia secreta. Terão alguns querido, com isso, evitar “o pior”?
A primeira onda de repressão anti-religiosa (...) verifica-se provavelmente na Albânia. O primaz Gaspar Thaci, arcebispo de Shkodêr, morreu em residência vigiada quando se encontrava nas mãos da polícia secreta. Vincent Prendushi, arcebispo de Durrês, condenado a 30 anos de trabalhos forçados, morreu em fevereiro de 1949, provavelmente em conseqüência de tortura. Em fevereiro de 1948, cinco religiosos, entre eles os bispos Volai e Ghini, o superior da delegação apostólica, foram condenados à morte e fuzilados. Mais de cem religiosos e religiosas, padres e seminaristas morreram na prisão ou foram levados diante de pelotões de fuzilamento. Como conseqüência dessa perseguição, pelo menos um muçulmano, o jurista Mustafa Pipa, foi executado: ele havia tomado a defesa de franciscanos. (...) em 1967, Henver Hoxha declarava que a Albânia se tornara o primeiro Estado ateu do mundo. A gazeta Nendorí anunciava com orgulho que todas as mesquitas e igrejas do país haviam sido demolidas ou se encontravam fechadas ao culto 2.169 no total, das quais 327 eram santuários católicos.
Na Hungria a confrontação violenta entre a Igreja Católica e o poder iniciou-se no decorrer do verão de 1948, com a “nacionalização” das várias escolas confessionais. Cinco padres foram condenados em julho; as condenações continuaram durante o outono. O indomável primaz da Hungria, cardeal Jozsef Mindszenty, foi preso em 26 de dezembro de 1948, segundo dia das festas do Natal, e condenado a prisão perpétua em 5 de fevereiro de 1949. Com a assistência de seus “cúmplices”, ele teria fomentado uma conspiração contra a República”, seguido da prática de espionagem, etc. — tudo isso, bem entendido, a favor das “potências imperialistas” e em primeiro lugar dos Estados Unidos. Um ano mais tarde o poder ocupava grande parte dos conventos, expulsando a maior parte dos 12 mil religiosos e religiosas que neles viviam. Em junho de 1951 o decano do episcopado e colaborador mais próximo do cardeal Mindszenty, Monsenhor Grosz, arcebispo de Kalocza, conhecia destino idêntico ao do seu primaz. As Igrejas Calvinista e Luterana, nitidamente com menos força, contaram também várias vítimas, bispos e pastores, entre eles uma eminente personalidade calvinista, o bispo Laszlo Ravasz.
Na Tchecoslováquia, como acontecera na Hungria, o poder tudo fez para criar no interior da Igreja Católica uma corrente de dissidência disposta à colaboração. Como os resultados obtidos foram apenas parciais, passou-se depois a um grau superior de repressão. Em junho de 1949, Josef Beran, arcebispo de Praga, encarcerado pelos nazistas desde 1942 nos campos de Terezin e de Dachau, foi colocado sob residência vigiada e depois aprisionado. Em setembro de 1949, foram presos algumas dezenas de vigários que protestavam contra a lei sobre as Igrejas. Em 31 de março de 1950, abria-se em Praga o processo de altos dignitários das ordens religiosas, acusados de espionagem a favor do Vaticano e de outras potências estrangeiras, de organização de depósitos clandestinos de armas e de preparação de um golpe de Estado. O redentorista Mastilak, reitor do Instituto Teológico, foi condenado a prisão perpétua. Os outros acumularam entre si 132 anos de cadeia. Na noite de 13 para 14 de abril do mesmo ano, verificava-se uma intervenção de grande envergadura contra os conventos, preparada pelo Ministério do Interior como uma operação militar. A maior parte dos religiosos foi deslocada e aprisionada. Simultaneamente, a polícia colocou os bispos sob residência vigiada, de tal modo que todo o contato com o mundo exterior era impossível.
Na primavera de 1950, o regime ordenou na Eslováquia Oriental a liquidação da Igreja Greco-Católica (Uniata) através da sua integração forçada na Igreja Ortodoxa — processo utilizado em 1946 na Ucrânia Soviética. Os eclesiásticos que se opuseram foram aprisionados ou afastados das suas paróquias. O arcipreste da Rutênia Soviética, Jozsef Csati, foi deportado, depois de um processo fictício, para o campo de Vorkuta, na Sibéria, onde permaneceu de 1950 até 1956.
A repressão das Igrejas foi concebida e supervisada pelas cúpulas do PCT. A sua direção aprovava, em setembro de 1950, a concepção política de uma série de processos contra católicos a terem início em Praga, em 27 de novembro de 1950. Nove personalidades do círculo de colaboradores mais próximos dos bispos — à frente das quais figurava Stanislav Zela, vigário-geral de Olomuc, na Morávia Central — foram condenadas a pesadas sentenças. Em 15 de janeiro de 1951, dessa vez em Bratislava, capital eslovaca, terminava o processo de três bispos, entre eles o da Igreja Greco-Católica. Os acusados nesses dois “processos dirigidos contra os agentes do Vaticano na Tchecoslováquià' (frase comum na época) foram condenados a sentenças entre os dez anos e a prisão perpétua. Essa série terminou no mês de fevereiro de 1951, com novos processos, alguns incidindo de novo sobre os círculos próximos dos bispos; mas a repressão não pararia aqui. Stepan Trochta, bispo de Litomerice (Boémia Central), resistente preso em maio de 1942 e detido até o fim da guerra nos campos de concentração de Terezin, Mauthausen e Dachau, foi condenado a 25 anos de prisão... em julho de 1954.
(...) A elite da intelligentsia católica foi duramente atingida pelos dois processos de 1952.  (...) Nos países balcânicos, a repressão contra as Igrejas seguiu o mesmo roteiro. Na Romênia, a liquidação da Igreja Greco-Católica (Uniata), a segunda mais importante em número de fiéis depois da Ortodoxa, acentuou-se durante o outono de 1948. A Igreja Ortodoxa assistiu, muda, aos acontecimentos, uma vez que, em geral, a sua hierarquia apoiava o regime (o que não impediu o fechamento de várias igrejas e a prisão de alguns popes). Em outubro, encontravam-se já presos todos os bispos uniatas. A Igreja Greco-Católica foi oficialmente proibida em 1º de dezembro de 1948. Contava, naquele momento, com 1.573.000 fiéis (numa população de 15 milhões de habitantes), 2.498 edifícios de culto e 1.733 padres. As autoridades confiscaram os seus bens, fecharam as suas catedrais e igrejas, chegando ao ponto de incendiar as suas bibliotecas; foram presos 1.400 padres (em torno de 600 em novembro de 1948) e cerca de 5.000 fiéis, dos quais 200, em média, foram assassinados nas prisões.
A Igreja Católica Romana — 1.250.000 fiéis — sofreu os primeiros ataques em maio de 1948, com a prisão de 92 padres. As autoridades fecharam as escolas católicas e confiscaram as instituições médicas e de caridade. Em junho de 1949, vários bispos da Igreja Romana foram presos; no mês seguinte, as ordens monásticas foram proibidas. A repressão culminou em setembro de 1951, com a organização de um grande processo político no tribunal militar de Bucareste: numerosos bispos e leigos foram condenados como “espiões”.
Um dos bispos greco-católicos, ordenado secretamente, preso durante 15 anos e que mais tarde trabalhou como operário, testemunha: “Durante longos anos, suportamos em nome de São Pedro a tortura, os espancamentos, a fome, o frio, o confisco de todos os nossos bens, o escárnio e o desprezo. Beijávamos as algemas, as cadeias e as grades de ferro das nossas celas como se fossem objetos de culto, sagrados; e a nossa farda de prisioneiros era o nosso hábito de religiosos. Nós havíamos escolhido carregar a cruz, apesar de nos proporem sem cessar uma vida fácil em troca da renúncia a Roma. Os nossos bispos, padres e fiéis foram condenados, no total, a mais de 15 mil anos de detenção e cumpriram mais de mil. Seis bispos amargaram na prisão por fidelidade a Roma. Hoje, apesar de todas as vítimas, a nossa Igreja possui o mesmo número de bispos que na época em que Stalin e o patriarca ortodoxo Justiniano, com todo o triunfo, a declararam morta.” (Frantisek Miklosko (Vocês não conseguirão destruí-los, Bratislava, archa, 1991, pp. 272-3) (págs. 482-486)
24. “a doutrina bolchevique exigia a liquidação da propriedade privada e o desenraizamento, para sempre, do seu proprietário. (...) A partir de 1945, os novos regimes começaram as nacionalizações (estatizações) das grandes empresas, operação muitas vezes legitimada pela expropriação necessária dos bens dos “alemães, traidores e colaboracionistas”. Assegurado o monopólio do poder, chegou a vez dos pequenos proprietários, comerciantes e artesãos. Os proprietários de oficinas e de modestas lojas que nunca haviam explorado quem quer que fosse, exceto eles próprios ou os seus familiares, tinham amplas razões de descontentamento. O mesmo acontecia com os camponeses, ameaçados desde 1949-1950 pela coletivização forçada das suas terras, imposta sob pressão dos dirigentes soviéticos. Em situação idêntica se encontravam os operários (sobretudo nos centros industriais), atingidos por diferentes medidas que afetavam o seu nível de vida ou liquidavam as conquistas sociais do passado.
(...) A perseguição foi conscienciosamente utilizada pelos dirigentes comunistas para mergulhar a sociedade no que Karel Kaplan classifica como “psicologia do medo” e que era concebida por eles como “fator de estabilização” do regime.” (págs. 487-488)
25. “O mar de sofrimento era imenso, e os rios caudalosos que o alimentavam não cessavam de correr. Depois da eliminação dos representantes dos partidos políticos e da sociedade civil, chegou a vez da “gente do povo'. Nas fábricas, “perturbadores da ordem” foram tratados como “grandes sabotadores” e atingidos pela “justiça de classe”. Essa justiça voltou-se também contra todos os que, nos povoados, tinham o privilégio de uma autoridade natural em virtude de um saber e de uma experiência acumulados ao longo de décadas, e que se opunham a uma coletivização forçada de suas terras inspirada no modelo da “melhor agricultura do mundo”. Milhões de pessoas compreenderam então que as promessas que muitas vezes os haviam levado a se filiarem à política comunista não passavam de mentiras táticas. (pág. 489)
26. “Começa agora a ser possível conhecer o número exato de prisões e de campos de concentração. Já o número de pessoas que os povoaram é bem mais difícil de ser determinado. Na Albânia, o mapa estabelecido por Odile Daniel indica a localização de 19 campos e prisões. Na Bulgária, o mapa do “Gulag búlgaro”, estabelecido depois de 1990, localiza 86 campos, e cerca de 187.000 pessoas foram recenseadas pela associação dos antigos presos políticos para o período de 1944-1962. (...)
Na Hungria, (...) segundo diferentes estimativas, 700.000 a 860.000 pessoas teriam sido condenadas. Na maior parte dos casos, tratava-se de delitos “contra a propriedade do Estado”. (...)
Na Romênia, a avaliação do número de presos durante o regime comunista varia entre 300.000 e 1.000.000; o segundo número inclui provavelmente não apenas os presos políticos como também os de direito comum (sempre lembrando que a distinção entre esses dois tipos se revela por vezes bastante complicada, sobretudo nos casos de “parasitismo”). No que se refere aos campos de concentração, o historiador inglês Dennis Deletant avaliou em 180.000 o número de pessoas presas nos campos romenos no início dos anos 50. Na Tchecoslováquia, o número de presos políticos nos anos 1948-1954 está hoje estabelecido em 200.000 pessoas. Para uma população de 12,6 milhões de habitantes, funcionaram 422 campos e prisões.” (págs. 492-493)
27. “a Romênia (...) foi provavelmente o primeiro país a introduzir no continente europeu os métodos de “re­edu­cação” através da “lavagem cerebral”, utilizados pelos comunistas asiáticos (...) O objetivo demoníaco era levar os detidos a torturarem-se uns aos outros. Essa invenção desenvolveu-se em Pitesti, uma prisão relativamente moderna, construída durante os anos 30, a cerca de 110 quilômetros de Bucareste. A experiência começou em dezembro de 1949 e durou cerca de três anos. (...) Eugen Turcanu, um prisioneiro com um passado fascista (...) tornou-se o chefe de um movimento chamado Organização dos Detidos com Convicções Comunistas (ODCC). O objetivo era a reeducação dos presos políticos, combinan­do o estudo de textos doutrinários comunistas com tortura física e moral. O núcleo re-educativo era constituí­do por 15 detidos escolhidos, com a missão de primeiro estabelecerem contatos e depois recolherem as confidências dos outros presos. Segundo o relato do filósofo Virgil Ierunca, a reeducação comportava quatro fases.
A primeira chamava-se o “desmascaramento externo”: o preso devia dar provas da sua lealdade, confessando o que ele havia escondido na ocasião do inquérito do seu processo, sobretudo as suas liga­ções com amigos que continuavam em liberdade. No decorrer da segunda fase, a do “desmas­ca­ra­men­to interno” ele devia denunciar os que o tinham ajudado no interior da prisão. Na terceira fase, a do “desmascaramento, moral público”, era exigida a negação de tudo o que para ele era importante ou mesmo sagrado — os pais, a mulher, a noiva, os amigos e Deus, caso se tratasse de alguém religioso. Chegava depois a quarta fase: o candidato a membro da ODCC devia “reeducar” o seu melhor amigo, torturando-o pessoalmente e tornando-se ele próprio um carrasco.” (pág. 494)
28. “O inferno de Pitesti. (...) Em Pitesti (...) foi praticada toda gama possível e impossível — de suplícios. O corpo era queimado com cigarros; partes do corpo de alguns prisioneiros começavam a gangrenar, caíam como as dos leprosos; outros eram obrigados a ingerir excrementos e, se os vomitavam, o vômito era-lhes enfiado pela garganta abaixo.
A imaginação delirante de Turcanu se excitava sobretudo com os estudantes religiosos, que se recu­sa­vam a renegar Deus. Alguns eram “batizados” todas as manhãs da seguinte maneira: enfiavam-lhes a cabeça num tonel cheio de urina e fezes enquanto os outros presos recitavam em volta a fórmula do batismo. Para que o torturado não se asfixiasse, de tempos a tempos a sua cabeça era levantada do tonel, para que ele pudesse respirar, e de novo a mergulhavam no magma repugnante. Um dos que siste­ma­ti­ca­men­te sofreram essa tortura criara o seguinte automatismo, que durou cerca de dois meses: era ele próprio que todas as manhãs imergia a cabeça no tonel, sob as gargalhadas dos re-educadores.
Quanto aos seminaristas, Turcanu obrigava-os a oficiar nas missas negras que ele próprio encenava, sobretudo durante a Semana Santa, na vigília pascal. Alguns desempenhavam o papel de meninos do coro, outros de padres. O texto litúrgico de Turcanu era, evidentemente, pornográfico e parafraseava de forma demoníaca o original. A Virgem Maria era referida como “a grande prostituta”, e Jesus “o imbecil que morreu na cruz”. O seminarista que desempenhava o papel de padre devia despir-se completamente; depois ele era envolvido por um lençol sujo de excrementos e lhe penduravam no pescoço um falo confeccionado com sabão, miolo de pão e pulverizado com DDT. Na noite que antecedeu a Páscoa de 1950, os estudantes em curso de reeducação foram obrigados a passar diante do “padre” e a beijar o falo, dizendo: “Cristo ressuscitou”.” (pág. 495)
29. “A gestão do passado nos Estados pós-comunistas mereceria que lhe fosse dedicado um livro. (...) em nenhum lado o Partido Comunista foi proibido. Os antigos partidos no poder mudaram geralmente de nome, exceto na República Tcheca, onde foi organizado um “referendo” no interior desse partido que se pronunciou pela continuação do antigo nome. Por quase todos os lugares, os dirigentes mais comprometidos foram afastados e as direções renovadas.
Houve poucos processos contra os responsáveis da repressão ainda vivos. O mais espetacular desen­rolou-se na Romênia, sob a forma de um pseudo-processo que terminou com a execução de Nicolas Ceausescu e da sua mulher, em 25 de dezembro de 1989, tendo o cadáver do ditador sido mostrado na televisão. Na Bulgária, Todor Jivkov, antigo secretário-geral do Partido, foi julgado em abril de 1991, mas ficou em liberdade. Não há notícia de que tenha sido aplicado um dos mandamentos da nomenclatura búlgara: “Tomamos o poder pelo sangue, só pelo sangue o cederemos”. Na Albânia, alguns dirigentes comunistas foram condenados por... “utilização abusiva dos bens públicos e infração à igualdade dos cidadãos”, entre eles a viúva de Enver Hoxha, condenada a 11 anos de prisão. Na Tchecoslováquia, Miroslav Stepan, membro da direção e secretário do PCT para Praga, foi condenado em 1991 a dois anos de prisão como responsável pelas violências cometidas contra a manifestação de 17 de novembro de 1989. Vários processos foram finalmente abertos contra os dirigentes da RDA, sendo o mais recente o do seu último presidente, Egon Krenz, em agosto de 1997. Condenado a seis anos e meio de prisão efetiva, ele foi posto em liberdade enquanto espera o resultado de um recurso. Alguns processos continuam em aberto, como, na Polônia (...) A justiça pós-comunista instaurou vários processos contra os funcionários do aparelho de segurança, diretamente implicado nos crimes. Um dos mais interessantes é talvez o processo polonês, visando Adam Humer e os seus 11 co-acusados, oficiais do Departamento de Segurança, por crimes na repressão da oposição ao regime no final dos anos 40 e início dos anos 50; (...) Esses crimes foram efetivamente qualificados de crimes contra a humanidade, os únicos que, segundo a legislação, nunca prescrevem. No final desse processo, que durou dois anos e meio, o antigo coronel foi condenado a nove anos de prisão em 8 de março de 1996. Na Hungria, os autores do tiroteio de 8 dezembro de 1956 em Salgotarjan, uma cidade industrial a nordeste de Budapeste, foram condenados em janeiro de 1995 por crimes contra a humanidade. No entanto, a sentença do Supremo Tribunal de janeiro de 1997 decide que a partir de 4 de novembro de 1956, e devido à intervenção ilegal das forças soviéticas, houve estado de guerra entre os dois países e que esses atos devem ser qualificados como atos de guerra contra civis e não crimes contra a humanidade.
Esses exemplos (...) nos levam a constatar que numerosos crimes continuam impunes, cobertos pela prescrição, ausência de testemunhas ou de provas. Uma vez depurada, a justiça tomou-se independente do poder executivo e assegura o respeito pelos princípios dos “países civilizados” como se diz. Assim, o princípio da prescrição e o princípio da não-retroatividade da lei (...). Em vários países, a legislação foi modificada para que certos crimes pudessem ser julgados. (...) [Na Polônia] a nova lei coloca o comunismo no mesmo nível dos ocupantes e dos fascistas, introduzindo a noção de crimes stalinistas, que são definidos deste modo: “Os crimes stalinistas, no sentido da lei, cobrem os atentados contra indivíduos ou grupos humanos, cometidos pelas autoridades do poder comunista ou por ele inspirados ou tolerados no período até 31 de dezembro de 1956.” Esses crimes não prescrevem. Em 1995, os artigos do Código Penal sobre a prescrição foram modificados, e os crimes mais graves, cometidos contra as liberdades cívicas antes de 31 de dezembro de 1989, podem ser julgados num prazo de 30 anos a partir de 1º de janeiro de 1990. Na República Tcheca, a lei sobre a “ilegitimidade do regime comunista e a resistência face a ele”, adotada em 1993, prolonga até ao fim de 1999 o prazo de prescrição para crimes cometidos entre 1948 e 1989 que possam ser classificados como “políticos”.
(...) Em minha opinião, o castigo dos culpados não foi aplicado a tempo, de maneira adequada. (...) No entanto, a maneira como os alemães abriram os arquivos da Stasi, a polícia política da RDA, a todos os cidadãos que se sintam atingidos, parece-me judiciosa. Ela dá responsabilidade, e cada um é convidado a investigar o seu próprio “processo” — o teu marido era informante, agora já sabes, é contigo...
A ferida, apesar de tudo, continua aberta.” (págs. 533-537)




Comunismos da Ásia:

entre “reeducação” e massacre

Jean-Luis Margolin, Pierre Rigoulot


30. “A repressão na China comunista foi uma réplica das práticas do “Irmão Mais Velho” a URSS de um Stalin, cujo retrato estava ainda em evidência em Pequim no início dos anos 80? Não, se levarmos em conta a quase ausência de expurgos assassinos no interior do Partido Comunista ou a relativa discrição da polícia política (...) Mas sim, seguramente, se considerarmos — sem contar com a guerra civil — todas as mortes violentas atribuíveis ao regime: (...) estimativas sérias apontam para algo entre seis e dez milhões o número de vítimas diretas, incluindo centenas de milhares de tibetanos; além disso, dezenas de milhões de “contrarevolucionários” passaram longos períodos das suas vidas no sistema penitenciário, onde talvez 20 milhões tenham perecido. Sim, ainda mais definitivamente, se incluirmos os “mortos a mais”, contando entre 20 e 43 milhões, dos anos 1959-1961, aqueles do indevidamente chamado “Grande Salto Adiante”, vítimas de uma fome inteiramente provocada pelos projetos aberrantes de um homem, Mao Zedong (...)
Depois do desaparecimento da URSS (1991) e da descomunização do Leste Europeu, (...) a sorte dos farrapos dispersos do “socialismo real” depende do futuro do comunismo na China — país que desem­pe­nha, aliás, o papel de uma “segunda Roma” do marxismo-Lêninismo, (...) era lá que os comunistas coreanos, japoneses e por vezes vietnamitas iam procurar refúgio e abastecimento.” (págs. 545-546)
31. “na China, o conjunto da moralidade baseia-se no respeito pelas obrigações familiares: se estas são rejei­ta­das, tudo é permitido. O indivíduo submete-se totalmente à família de substituição que a seita passa a ser então. O resto da humanidade está condenado ao inferno no Além — e à morte violenta neste mundo. (...) segundo uma proclamação de 1130, “ma­tar pessoas é cumprir o dharma (lei búdica)”; o assassinato é um ato de compaixão, uma vez que liberta o espírito; o roubo favorece a igualdade; o suicídio é uma fe­li­cidade invejável; quanto mais horrí­vel for a própria morte, maior será a sua recompensa (...) esses cruéis milenarismos ajudam a compreender por que razão alguns triunfaram e por que a violência que os acompanhou pôde, em dado momento, parecer normal, quase banal, aos olhos de muita gente.” (págs. 548-549)
32. “o “Grande Terror” stalinista dos anos 1936-1938 foi precedido pelos sovietes chineses, responsáveis, segundo certas estimativas, por 186.000 vítimas (...) A grande maioria dessas mortes foi provocada por resistências à reforma agrária radical quase imediatamente implementada, a um rigoroso sistema de cobrança de impostos e à mobilização de jovens justificada pelas necessidades militares. O esgotamento da população é tal que, onde o comunismo foi particularmente radical (Mao foi criticado, em 1931, pelos seus excessos terroristas, que alienavam o povo, e perdeu provisoriamente a direção), a ofensiva das forças de Nanquim encontra apenas uma fraca resistência. (...)
O Partido reprime, mas faz compromisso: inicia — sem nunca o confessar — o cultivo e a expor­ta­ção em grande escala de ópio, que, até 1945, proporcionará entre 26% e 40% das receitas públicas da base. (...) os militantes locais são com freqüência oriundos das camadas mais abastadas do campesinato, sobre­tudo de famílias de proprietários de terras (...) vindos para o comunismo baseado num nacionalis­mo radical. Os militantes “centrais”, os soldados do exército “regular”, por seu turno, são na maior parte recrutados entre os marginais, os desqualificados: bandidos, vadios, mendigos, militares sem soldo, e, no caso das mulheres, prostitutas. Mao pensava, já em 1926, em lhes atribuir um papel importante na revo­lu­ção: “Essas pessoas são capazes de bater-se muito corajosamente; chefiadas de uma maneira adequada, podem tornar-se uma força revolucionária.” (...) O resto da população, excetuando uma minoria de opositores resolutos (também eles freqüentemente membros da elite), brilha sobretudo pela sua passividade, pela sua “frieza”, dizem os dirigentes comunistas — incluindo esse “campesinato pobre e semi-pobre” que é suposto constituir a base da classe do PC no meio rural...” (págs. 556-558)
33. “O elemento-chave da reforma agrária foi o “comício da acidez”: diante do povoado reunido, compare­ciam o ou os proprietários, freqüentemente apelidados de “traidores” (...) os militantes têm de dar uma aju­da, maltratando fisicamente e humilhando os acusados; então, geralmente, a conjunção dos oportu­nis­tas com aqueles que têm contas a ajustar permite que jorrem as denúncias, e a temperatura começa a subir; (...) não é difícil, depois disso, chegar à condenação à morte dos proprietários (evidentemente acompanhada pelo confisco dos respectivos bens), muitas vezes executada no próprio local e no mesmo instante, com a participação mais ou menos ativa dos camponeses. (...) a maior parte dos autores está de acordo em admitir cifras entre dois e cinco milhões de mortos. Além disso, de quatro a seis mi­lhões de “kulaks” chineses contribuíram para encher os novíssimos laogai, e sem dúvida o dobro foi colo­ca­do, por períodos de tempo variáveis, “sob controle” das autoridades locais: vigilância constante, as ta­re­fas mais duras, perseguições em caso de “campanhas de massas”. Houve, no total, 15 mortos na Longa Curva, (...) o processo de reforma começou mais cedo nesse povoado; ora, depois de 1948, certos exces­sos foram banidos. E eles haviam atingido duramente essa aldeia: massacre de toda a família do presi­den­te da associação católica local (com a igreja tendo sido fechada), espancamento e confisco dos bens dos camponeses pobres que se tinham solidarizado com os ricos, procura de “origens feudais” ao longo de três gerações (o que não deixava praticamente ninguém livre de uma “requalificação” funesta), tortu­ras até à morte para obter a localização de um mítico tesouro, interrogatórios sistematicamente acom­pa­nhados por torturas com ferros em brasa, extensão das perseguições aos familiares dos executados, violação e destruição de sepulturas, a arbitrariedade de um quadro, antigo bandido, católico renegado que obriga uma menina de 14 anos a se casar com um dos seus filhos, e declara a quem queira ouvi-lo: “A minha palavra é lei, e aquele que eu condeno à morte tem de morrer.” No outro extremo da China, no Yunnan, o pai de He Liyi, polícia do antigo governo, é por essa simples razão classificado como “pro­prie­tá­rio de terras”. Tratando-se de um funcionário, é imediatamente condenado a trabalhos forçados; em 1951, no auge da reforma agrária local, declarado “inimigo de classe” ele é levado e exibido de povoado em povoado, e em seguida condenado à morte e executado, sem qualquer espécie de processo.” (págs. 565-566)
34.As cidades: “tática do salame” expropriações. (...) O sistema de controle, em grande parte montado ainda antes da vitória, rapidamente dispôs de meios consideráveis: 5,5 milhões de milicianos no fim de 1950, 3,8 milhões de propagandistas (ou ativistas) em 1953, 75.000 informantes encarregados de coordená-los (e de vigiar sua dedicação ... ). Na cidade, (...) os grupos de residentes (de 15 a 20 lares) são encabeçados por comissões de moradores, por sua vez subordinadas às comissões de rua ou de bairro. Nada deve escapar-lhes: toda e qualquer visita noturna ou estada de um dia ou mais de um “forasteiro” deve ser objeto de registro junto à comissão de moradores; há um cuidado especial para que todos disponham do respectivo certificado de inscrição no registro dos habitantes da cidade, que se destina especialmente a evitar o êxodo rural “selvagem”. Desse modo, mesmo aquele que tem menos responsabilidade desempenha um papel de auxiliar da polícia. (...)
em maio de 1949, (...) as tropas da Segurança (...) abrem cárceres improvisados, ao mesmo tempo que nas prisões já existentes a superlotação e as condições são de uma dureza sem precedentes: até 300 detidos numa cela com 100 metros quadrados, e 18.000 na penitenciária central de Xangai; rações alimentares de fome, esgotamento pelo trabalho; disciplina desumana com violências físicas constantes (por exemplo, coronhadas, pelo simples fato de erguer a cabeça, obrigatoriamente baixa durante toda a marcha). A mortalidade, até 1952 seguramente muito superior a 5% anuais (média dos anos 1949-1978 no laogai), chega a atingir 50% em seis meses numa determinada brigada do Guangxi, ou 300 mortos por dia em certas minas do Sharixi. As torturas mais variadas e mais sádicas são fatos comuns, sendo a mais freqüente a suspensão pelos pulsos ou pelos polegares; um religioso chinês morre, depois de 102 horas de interrogatório contínuo. Os indivíduos mais terrivelmente brutos agem sem o menor controle: um comandante de campo teria assassinado ou mandado enterrar, vivos, 1.320 detidos, num ano, além de cometer inúmeros estupros. As revoltas, nessa ocasião muito numerosas (os detidos, incluindo um grande número de militares, não tinham tido ainda tempo de serem moralmente esmagados), conduzem a verdadeiras matanças: vários milhares dos 20 mil degredados dos campos petrolíferos de Yanchang são executados; em novembro, mil dos cinco mil amotinados de um estaleiro florestal são enterrados vivos.” (págs. 567-569)
35.A maior fome da história (1959-1961). Durante muito tempo, circulou no Ocidente um mito tenaz: sim, a China não é um modelo de democracia, mas “Pelo menos Mao conseguiu dar uma tigela de arroz a cada chinês”. Infelizmente, nada é mais falso: por um lado, como vamos ver, a modesta ração alimentar disponível por habitante não aumentou provavelmente de forma significativa entre o início e o fim do seu reinado, e isto a despeito de esforços impostos a um campesinato, raramente vistos no curso da história; por outro lado, e sobretudo, Mao e o sistema que ele criou foram diretamente responsáveis por aquela que continuará a ser (assim esperamos... ) a mais mortífera fome de todos os tempos, em todos os países, em valor absoluto.” (pág. 576)
36.”o resultado final revela cruamente a incompetência econômica, o desconhecimento do país, o isolamento na auto-suficiência e a utopia voluntarista da direção do PC e, singularmente, do seu chefe. (...) Esse êxito aparente [da coletivização dos campos] e os bons resultados das colheitas de 1957 levam Mao a propor e impor aos reticentes, em agosto de 1958, tanto os objetivos do Grande Salto (...), como o suposto meio de lá chegar: a comuna popular.
Trata-se, simultaneamente, e em muito pouco tempo (“três anos de esforços e de privações, mil anos de felicidade”, assegura um slogan na moda), de modificar completamente o modo de vida dos cam­po­neses — obrigados a agruparem-se em unidades de milhares, quando não de dezenas de milhares de famílias em que tudo se torna comum, a começar pelas refeições —,de desenvolver a produção agrícola numa proporção enorme, graças a obras faraônicas de irrigação e a novos métodos de cultivo e, finalmente, de suprimir a diferença entre o trabalho agrícola e o trabalho industrial através da instalação por todo lado de unidades industriais, sobretudo pequenos altos-fornos (...)
Trabalha-se dia e noite sob as bandeiras vermelhas drapejando ao vento, produz-se “mais, com maior rapidez, melhor e mais economicamente”; os responsáveis locais anunciam recorde atrás de recorde, e em conseqüência os objetivos sobem constantemente: até 375 milhões de toneladas de cereais para 1958, o dobro dos 195 milhões de toneladas (um número bastante bom) do ano anterior; em dezembro, anunciar-se-á que o objetivo foi atingido. É verdade que tal anúncio é feito depois de mandarem para os campos o pessoal do Departamento Central de Estatísticas, seguramente “direitista”, uma vez que manifestara dúvidas (...) ajustam-se para cima as normas de produção, aumentam-se as entregas obrigatórias, manda-se desguarnecer os campos em proveito das oficinas. (...) A “emulação socialista” vai cada vez mais longe: supressão total das parcelas individuais e dos mercados livres, abolição do direito de abandonar o coletivo, recolha de todos os utensílios metálicos para transformá-los em aço, e por vezes das portas de madeira para aquecer os altos-fornos. A título de compensação, todas as reservas alimentares comuns serão consumidas no curso de memoráveis banquetes. Como se pode lembrar, “era considerado revolucionário comer carne” no Shanxi: nenhum problema, a colheita ia ser fabulosa... (...)
Mas, logo, os dirigentes (...) têm de render-se à evidência: caíram na sua própria armadilha (...) Em 1958-1959, quanto maior for a mentira, mais rápida será a promoção do seu autor: o descontrole e os excessos são totais, os “termômetros” estão todos quebrados, e os potenciais críticos estão na prisão ou nas obras de irrigação. (...)
Certos métodos agronômicos vindos diretamente do acadêmico soviético Lyssenko, (...) revelam-se desastrosos: apesar de Mao afirmar que “com companhia [os grãos] nascem facilmente, quando crescem juntos sentem-se mais satisfeitos” — aplicação criativa da solidariedade de classe à natureza —, as sementeiras ultra-apertadas (cinco a dez vezes a densidade normal) matam as jovens plantas, os sulcos profundos secam a terra ou fazem subir os sais; o trigo e o milho não se dão muito bem nos mesmos campos, e a substituição da cevada tradicional pelo trigo nas altas terras frias do Tibet é pura e simplesmente catastrófica. Outros “erros” são de iniciativa nacional: o extermínio dos pardais comedores de grãos fez proliferar os parasitas; muitas obras hidráulicas, executadas às pressas ou mal coordenadas umas com as outras, revelam-se inúteis ou até perigosas (erosão acelerada, risco de ruptura brutal às primeiras cheias), e a sua construção custa caro em vidas humanas (10.000 dos 60.000 trabalhadores numa obra no Henan); a vontade de apostar o futuro numa enorme colheita de cereais (...) arruína as “pequenas” atividades agrícolas anexas, incluindo a pecuária, freqüentemente indispensáveis ao equilíbrio alimentar; no Fujian, as plantações de chá, geradoras de um fortíssimo valor acrescentado, são transformadas em arrozais. (...)
grandes obras de irrigação freqüentemente não terminadas ou atamancadas, (...) aberrantes distribuições de mão-de-obra: as empresas do Estado contratam em 1958 a bagatela de 21 milhões de novos operários, ou seja, um crescimento, nesse setor, de 85% num único ano! (...) os trabalhadores dos campos ocupam-se de tudo (grandes obras, micro-aciarias cuja produção vai geralmente inteira para o refugo, destruição dos antigos povoados e construção de novos alojamentos, etc.), menos do cultivo; em face das “miríficas” colheitas de 1958, considerou-se até mesmo possível reduzir em 13% a área semeada de cereais. O resultado dessa combinação de “delírio econômico e mentira política” foram as colheitas de cereais de 1960, que os camponeses já não tinham sequer forças para apanhar. O Henan, primeira província a declarar-se “100% hidraulizada” (todos os trabalhos de irrigação e de represamento possíveis foram em princípio realizados), será também uma das mais duramente atingidas pela fome (entre dois e oito milhões de mortos, conforme as estimativas). (...) Será, pois, no ano seguinte, a dieta de sopa rala de arroz para (quase) toda a gente, e o slogan da moda será a frase surrealista lançada por um Diário do Povo de finais de 1959: “Viver de uma maneira frugal num ano de abundância”. A imprensa nacional pôs-se a preconizar as virtudes da sesta, e os professores de Medicina insistem na fisiologia particular dos chineses, que lhes torna supérfluas gorduras e proteínas. (...)
A fome afetará todo o país: em Pequim, a quadra de basquete é transformada em horta, e dois milhões de galinhas invadem as varandas da capital; nenhuma província escapa ao flagelo, a despeito da imensidão do país e à extrema diversidade das condições naturais e das culturas. (...) o preço do arroz nos mercados livres (ou no mercado negro) foi multiplicado por 15, e às vezes por 30. O dogma maoísta agrava o desastre: uma vez que as comunas populares devem proporcionar a auto-suficiência, as transferências de víveres entre províncias são drasticamente reduzidas. As pessoas sofrem com a escassez de carvão (os mineiros, esfomeados, foram procurar comida, ou então cultivam hortas), e também com a tendência à apatia e à dissolução suscitadas pela fome. (...)
O fato de a fome ter sido de natureza política está demonstrado pela concentração de uma grande parte da mortalidade nas províncias governadas por maoístas radicais, ao passo que, em tempos normais, são antes exportadoras de alimentos: Sichuan, Henan, Anhui. Esta última, no Centro-Norte, é sem dúvida a mais afetada: a mortalidade cresce 68%o, em 1960 (contra cerca de 15%o num período normal), enquanto a natalidade cai para 11 %o (contra cerca dos 30%o habituais). Resultado: a população sofre uma diminuição de dois milhões de pessoas (6% do total) num único ano. Os ativistas do Henan estão convencidos, como Mao, de que todas as dificuldades são provocadas pelo fato de os camponeses esconderem os cereais: (...) É contra o conjunto dos rurais que, no outono de 1959, é lançada uma ofensiva de estilo militar, (...) Pelo menos dez mil camponeses são aprisionados, e muitos morrem de fome. É dada ordem de quebrar todos os utensílios de cozinha dos particulares (os que não foram transformados em aço inutilizável), a fim de impedir qualquer espécie de auto-alimentação e de tirar-lhes a vontade de rapinar os bens das comunidades. É mesmo proibido fazer fogo, num momento em que o rude inverno se aproxima! As distorções da repressão são terríveis: tortura sistemática de milhares de detidos, crianças mortas, cozinhadas e em seguida utilizadas como adubo (...) No Anhui, onde se proclama a intenção de “conservar a bandeira vermelha, mesmo com 99% de mortos”, os quadros voltam às boas e velhas tradições de enterrar as pessoas vivas ou torturá-las com ferros em brasa. Os funerais são proibidos: receia-se que o seu número assuste os sobreviventes e se transformem em manifestações de protesto. É proibido recolher as inúmeras crianças abandonadas: “Quantas mais forem recolhidas, mais serão abandonadas”.Os aldeões desesperados que tentam chegar às cidades são recebidos a tiro. O distrito de Fenyang conta mais de 800 mortos, e 12,5% da sua população rural, ou seja, 28.000 pessoas são punidas segundo diversas modalidades. A situação ganha contornos de uma verdadeira guerra anti-camponesa. (...) A mortalidade pela fome ultrapassa os 50% em certos povoados; por vezes, só os quadros que abusaram do seu poder estão em condições de sobreviver. E, como no Henan, os casos de canibalismo são numerosos (63 reconhecidos oficialmente), em especial através de “associações” onde as pessoas trocam os seus filhos pelos de outros, para os comerem.
(...) milhões de famintos que tentam alimentar-se cozendo ervas, casca de árvore e folhas de choupo, errando pelas estradas em busca de qualquer coisa para comer, tentando atacar os comboios de mantimentos, lançando-se por vezes em motins provocados pelo desespero (...) não lhes serão enviados quaisquer alimentos, mas por vezes virá a ordem para fuzilar os quadros locais “encarregados”; uma maior sensibilidade às doenças e às infecções multiplica a mortalidade; as mulheres, esgotadas, quase não são mais capazes de conceberem e parirem filhos. Os detidos do laogai não são os últimos a morrer de fome, (...) os camponeses vizinhos vão por vezes às portas do campo de concentração mendigar um pouco de comida: três quartos dos membros da brigada de trabalho de Jean Pasqualini em agosto de 1960 estavam, um ano depois, mortos ou moribundos, e os sobreviventes tinham sido levados a procurar grãos de milho não digeridos nos excrementos dos cavalos, e vermes na bosta das vacas. Servem igualmente de cobaias para a experimentação de sucedâneos para a fome, como a mistura de farinha com 30% de pasta de papel na confecção do pão, ou de plâncton dos pântanos com caldo de arroz; o primeiro provoca no campo inteiro uma onda de terríveis constipações, acarretando numerosas mortes; o segundo causa igualmente doenças, a que os mais fracos não resistem. Finalmente, chega-se ao sabugo de milho moído, que se espalhará pelo país inteiro.
Em todo o país, a mortalidade salta de 11%o em 1957 para 15%o em 1959 e 1961, e sobretudo para 29%o em 1960. A natalidade cai de 33%o em 1957 para 18%o em 1961. Sem ter em conta o déficit de nascimentos (talvez 33 milhões), as perdas ligadas à sobre-mortalidade causada pela fome podem ser avaliadas, de 1959 a 1961, entre 20 milhões (número semi-oficial na China desde 1988) e 43 milhões de pessoas. De fato, estamos em presença da fome mais grave (pelo menos em números absolutos) de toda a história da China (...) e sem dúvida também da história do mundo. (...)
A mortalidade nos campos era, em tempos normais, 30% a 60% superior à das cidades; passa para o dobro (29%o contra 14%o) em 1960.” (págs. 576-584)
37.”O desastre de 1959-1961, “grande segredo” do regime, para cuja denegação muitos visitantes estrangeiros contribuíram naquele momento, nunca foi, porém, reconhecido como tal. (...) o Grande Salto continua a escapar a toda e qualquer condenação, pelo menos publicamente.” (pág. 587)
38.Um “Gulag” escondido: o laogai. Os armários do comunismo chinês estão decididamente cheios de cadáveres (...) A imensa câmara frigorífica que é o arquipélago concentracionário não foge à regra. Constituído por um bom milhar de campos de trabalho de grande dimensão (ver mapa), bem como por uma infinidade de centros de detenção, ele raramente é objeto da menor referência nas obras dedicadas à República Popular, mesmo as mais pormenorizadas ou relativamente recentes. É verdade que o aparelho repressivo soube esconder-se: não se é condenado a “detenção' ou a “trabalhos forçados” (...), mas à “reforma” ou à “reeducação pelo trabalho”. Os principais lugares de internamento estão, muito logicamente, disfarçados de empresas públicas: assim, é preciso saber que a “tinturaria industrial de Jingzhou” (único nome que figura sobre a porta) é na realidade a prisão nº 3 da província de Hubei, ou que a “fazenda de chá de Yingde” corresponde à unidade de recuperação nº 7 da província de Guangdong. As próprias famílias dos internos só escrevem para uma caixa postal anônima. (...) Por ocasião de seus raros deslocamentos “pelo mundo”, os prisioneiros devem fazer-se invisíveis. Habituados a manterem sempre a cabeça baixa quando fora das suas celas, e a calarem-se, eles recebem, numa estação de trem, estas estranhas instruções: “Comportem-se naturalmente no interior do trem. É proibido, repito, proibido baixar a cabeça. Se alguém precisar ir aos lavabos, deverá fazer sinal ao guarda: punho fechado com o polegar estendido. Falar e fumar serão autorizados. Nada de brincadeiras. Os guardas têm ordens para disparar.” (pág. 590)
39.O sistema penitenciário mais povoado de todos os tempos. O laogai, ou seja, parte nenhuma... Nesse buraco negro, o sol radioso do maoísmo enterra dezenas de milhões de indivíduos (50 milhões no total até meados dos anos 80, segundo Harry Wu) (...) Muitos morrerão: se cruzarmos as duas avaliações aproximativas de Jean-Luc Domenach (uma dezena de milhões de detidos por ano, em média — entre 1% e 2% da população chinesa, conforme os momentos —, e 5% de mortalidade anual), veremos que 20 milhões de chineses morreram em cativeiro, quatro milhões dos quais durante o Grande Salto, entre 1959 e 1962 (...)
A grande massa dos detidos encontra-se, pois, em vastos campos de trabalho, espalhados por todo o país, situando-se os maiores e mais povoados nas zonas semi-desérticas do Norte da Manchúria, da Mongólia Interior, do Tibet, do Xinjiang e sobretudo do Qinghai, verdadeira “província penitenciária” (...) O seu campo nº 2 é talvez o maior da China, com pelo menos 50.000 deportados. Os campos das regiões mais remotas do Oeste e do Nordeste têm a reputação de serem muito duros, mas globalmente os ritmos de trabalho são mais esgotantes nas fábricas-prisões das zonas urbanas do que nas grandes fazendas penitenciárias do Estado.” (págs. 591-593)
40.À procura do “homem novo”. (...) Um documento interno da Segurança especifica o processo a que o suspeito deve ser submetido: “O reconhecimento dos crimes é uma condição prévia obrigatória; a submissão à lei é o começo da reforma. Reconhecimento e submissão são as duas primeiras lições que é necessário ensinar ao prisioneiro e ter presentes no espírito ao longo de todo o processo de reforma”; uma vez conseguida a ruptura com o passado, o prisioneiro pode começar a ser penetrado por “idéias justas”: “É imperativo instituir os quatro princípios educativos de base — para voltar a encaminhar as idéias políticas do detido no bom sentido: o marxismo-Lêninismo, a fé no maoísmo, no socialismo, no Partido Comunista e na ditadura democrática do povo.” (...)
Pasqualini, criado no catolicismo, ficou surpreendido ao encontrar a meditação, a confissão e o arrependimento transformados em práticas marxistas-Lêninistas — situando-se a diferença na dimensão obrigatoriamente coletiva e pública desses atos: o objetivo não é restaurar o laço entre o homem e Deus, mas fundir o indivíduo numa massa totalmente submetida ao Partido. (...) o objetivo é sempre o mesmo: levar à abdicação da personalidade. O chefe da cela, também ele um prisioneiro, freqüentemente um antigo membro do PC, desempenha aqui papel fundamental: “Lançava-nos infatigavelmente em discussões de grupo ou em histórias que contivessem princípios morais a observar. Todos os outros temas a que os nossos espíritos poderiam abandonar-se — a família, a comida, o desporto, os passatempos ou, evidentemente, o sexo — eram absolutamente proibidos. (...)
A pretensa “lavagem cerebral” descrita por certos ocidentais não é mais do que isso: em si mesma, nada de muito sutil, a imposição bastante rude de uma ideologia grosseira, que tem resposta para tudo pre­cisamente porque é simplista. Trata-se principalmente de não dar ao prisioneiro a mínima possibili­da­de de expressão autônoma. Os meios (...) mais originais são uma subalimentação sistemática, que enfra­que­ce tanto a resistência como a vida interior, e uma saturação permanente através da mensagem da ortodoxia, num contexto em que não se dispõe de tempos livres (...), nem de espaço de intimidade (celas superlotadas, luzes acesas toda a noite, muito poucos objetos pessoais autorizados), nem, evidentemente, da menor latitude para exprimir um ponto de vista original (...)
Um grau acima, é a “Prova”, ou a “luta”. Nada é espontâneo — a vítima é escolhida pela direção; o lugar (cela ou pátio), o momento e a intensidade são predeterminados mas a atmosfera anda próxima (pelo menos no assassinato) dos progroms camponeses da reforma agrária: “A nossa vítima era um prisioneiro com cerca de 40 anos, acusado de ter feito uma falsa confissão. 'É um contra-revolucionário empedernido!', gritava um guarda através de um megafone de cartolina. [...] Sempre que ele levantava a cabeça para dizer qualquer coisa — fosse verdade ou mentira, não nos interessava — nós o afogávamos sob uma tempestade de gritos: 'Mentiroso!', 'Vergonha da humanidade! , ou mesmo 'Pulha!' A prova continuou nessa linha durante três horas, e a cada minuto que passava tínhamos mais frio e mais fome, e tornávamo-nos mais malvados. Penso que seríamos capazes de fazê-lo em pedaços para conseguirmos o que queríamos. Mais tarde quando tive tempo para refletir, compreendi que também nós tínhamos sido as nossas próprias vítimas e tínhamos submetido a nós mesmos à prova, preparando-nos mentalmente para aceitar a posição do governo com um consentimento apaixonado, fossem quais fossem os méritos do homem que atacávamos.”
(...) a imensa maioria dos prisioneiros apresente, depois de algum tempo, todos os sinais exteriores da submissão. (...) A eficácia da reeducação tem a ver com a combinação sinérgica de dois poderosos meios de pressão psicológica: uma infantilização radical, em que o Partido e a administração se tornam pai e mãe, que re-ensinam o preso a falar, a andar (de cabeça baixa, a correr, guiado pela voz do guarda), a controlar o apetite e a higiene, etc., numa relação de dependência absoluta; a fusão no grupo, responsabilizável por cada gesto, por cada palavra, família de substituição no preciso momento em que os contatos com a verdadeira família tomaram-se quase impossíveis, em que as esposas dos detidos são incitadas a divorciarem-se, e os filhos a renegarem os pais. (...) “Falar por slogans, reagir como um autômato, é simultaneamente aniquilar-se, fazer um “suicídio psíquico”, e proteger-se contra os problemas, sobreviver. Pensar que é fácil conservar a sua identidade, duplicando sua personalidade seria certamente demasiado otimista.” (pág. 594-601)
41.Uma execução sumária no laogai. No meio deles todos estava o cabeleireiro, acorrentado. Uma corda à volta do pescoço, firmemente presa à cintura, mantinha-lhe a cabeça baixa. Tinha as mãos atadas atrás das costas. Os guardas empurraram-no até à beira do estrado, bem à nossa frente. Ele ali ficou, de pé, em silêncio, como um penitente amarrado, enquanto dos rastos deixados pelos seus pés se elevava um ligeiro vapor. Yen tinha preparado um discurso.
“Tenho algo de horrível a dizer-lhes. (...) Esse ovo podre, que aqui vêem à frente de vocês, foi preso por um problema moral (...) Agora descobrimos que, durante a sua estada aqui, seduziu um jovem prisioneiro de 19 anos (...) ao cometer o seu ato aqui, não só pecou moralmente, como também manchou a reputação da prisão e da grande política da Reforma pelo Trabalho. É por isso que, considerando os seus crimes repetidos, o representante do Supremo Tribunal Popular vai agora ler-lhes a sua sentença.”
O homem de uniforme azul-escuro avançou e leu o sombrio documento, uma recapitulação dos delitos que terminava com a decisão do tribunal popular: a morte, com execução imediata da sentença. (...) Antes mesmo que o representante do tribunal popular acabasse de ler a última palavra, o (...) guarda que se encontrava atrás dele empunhou uma enorme pistola e estourou-lhe os miolos. Uma chuva de sangue e de matérias cerebrais voou pelos ares e foi cair sobre aqueles entre nós que estavam nas pri­mei­ras filas. Desviei os olhos da figura horrível que, no chão, era agitada pelos últimos sobressaltos, e vomi­tei. Yen re-apareceu e falou novamente: “Que isto lhes sirva de aviso. (...) doravante não haverá mais qualquer espécie de indulgência aqui. A partir de hoje, todos os delitos de ordem moral serão puni­dos da mesma maneira. Agora, voltem para as suas celas e discutam o que acaba de acontecer.” (págs. 607-608)
42.A Revolução Cultural: um totalitarismo anárquico (1966-1976). Ao lado dos horrores astronômicos, e quase desconhecidos, da reforma agrária ou do Grande Salto, os cerca de 400 mil a um milhão de mortos (esse último número é o mais verossímil) relatados pela maioria dos autores a propósito dos estragos da “Grande Revolução Cultural Proletária” poderiam parecer quase modestos. Se, mais do que qualquer outro episódio da história contemporânea da China, ela impressionou o mundo inteiro e permanece na memória de todos, foi pelo radicalismo extremo do seu discurso e de alguns dos seus atos” (pág. 608)
43.Os autores da revolução. (...) Os que têm entre 14 e 22 anos em 1966 serão para Mao instrumentos muito entusiastas, à proporção de seu grande fanatismo doutrinário e de sua grande frustração. Fanatismo: primeira geração totalmente educada depois da revolução de 1949, (...) Depressa essa geração aprendeu que, como diz uma canção dos Guardas Vermelhos: “O Partido é a nossa mãe e o nosso pai”. E, em caso de conflito de paternidade, a escolha deve ser clara: renegar os genitores. Pasqualini conta deste modo a visita que um “horroroso fedelho de 10 ou 11 anos” faz ao pai, internado no laogai, em 1962: “Não queria vir aqui — brada ele, altivamente —, mas a minha mãe me obrigou. Você é um contra-revolucionário e uma desonra para a família. Você causou graves prejuízos ao governo. Merece estar na prisão. Tudo o que posso dizer é que seria melhor se reformar, pois, do contrário, você terá o que merece”. Até os guardas ficaram chocados com essas palavras. O prisioneiro voltou lavado em lágrimas (o que é proibido) à sua cela, murmurando: “Se soubesse que isso iria acontecer, tinha-o estrangulado no dia em que nasceu”. (...) Esse garoto teria cerca de 15 anos em 1966, a idade certa para se tornar um Guarda Vermelho... Os mais jovens foram sempre os mais violentos, os mais obstinados a humilhar as suas vítimas.” (págs. 612-614)
44.O momento de glória dos Guardas Vermelhos. As perseguições desencadeadas em 1966 por esses estudantes e colegiais que continuam a ser chamados, essencialmente, os “rebeldes revolucionários” ficaram como o símbolo do conjunto da Revolução Cultural. (...)
Tudo começa em 19 de junho de 1966, na seqüência da leitura, na rádio, do dazibao (cartaz redi­gi­do em grandes caracteres) de Nie Yuanzi, professor assistente de Filosofia em Beida (universidade de Pe­quim, a mais prestigiosa do país), que convoca à luta diabolizando o adversário: “Quebremos todos os con­troles e as maléficas conjuras dos revisionistas, resolutamente, radicalmente, totalmente, comple­ta­men­te! Destruamos todos os monstros, todos os revisionistas do tipo Kruschev!” Milhões de estudantes orga­nizam-se, então, e encontram sem dificuldade nos seus professores, nos encarregados pelas univer­si­dades, e depois nas autoridades municipais ou provinciais que tentam defendé-los, os “monstros e demônios” a serem eliminados; com uma certa imaginação, chamam-lhes ainda de “gênios malfeitores” ou então “fantasmas bovinos” ou “espíritos reptilianos”. (...) ­o apelo à destruição “de todos os monstros” que desencadeou o movimento na universidade de Pequim não permaneceu letra morta. O “inimigo de classe”, adornado com cartazes, com chapéus e por vezes com roupas ridículas (sobretudo as mulheres), forçado a posturas grotescas (e penosas), com o ros­to sujo de tinta preta, obrigado a latir como um cachorro, “de quatro”, deve perder a sua dignidade hu­ma­na. Um professor chamado Ma (“cavalo”) teve de comer erva. (...) Em agosto de 1967, a imprensa de Pequim vocifera: os antimaoístas são “ratazanas que correm pelas ruas, matem-nos, matem-nos”. Encon­tra­mos essa mesma desumanização no período da reforma agrária, em 1949: assim, um proprietário de terras é atrelado a um arado e obrigado a lavrar a terra à força de chicote: “Você nos tratou como bestas, agora você pode ser o nosso animal!”, gritam os camponeses. Vários milhões de “animais” como esse foram exterminados. Alguns foram até mesmo comidos: 137 pelo menos, no Guangxi, sobretudo diretores de colégio, e isto com a participação dos quadros locais do PC; certos Guardas Vermelhos mandaram servir carne humana na cantina; foi aparentemente também o caso de certas administrações. Harry Wu fala de um executado do laogai, em 1970, cujo cérebro foi devorado por um guarda da Segurança. Ele tinha — crime sem igual — ousado escrever: “Derrubem o presidente Mao”.
Não se sabe o que, naquele instante, motiva mais esses Guardas Vermelhos cujo grosso cinturão vai, du­ran­te muito tempo, constituir a principal arma: parecem oscilar constantemente entre um real desejo de transformação social e o happening de um verão particularmente quente, (...) repete-se intermina­vel­men­te o novo slogan simplista: “Há sempre razão para nos revoltarmos”, inventado em 18 de maio por Mao (...) os intelectuais e tudo o que os rodeia (livros, pinturas, porcelanas, bibliotecas, museus, edifícios culturais) são presas fáceis, a respeito das quais todos os clãs do poder podem pôr-se de acordo.
(...) Os funcionários nunca utilizam a palavra “intelectual” sem acrescentarem o epíteto “fedoren­to”; Jean Pasqualini, que limpava as sandálias ao sair de um chiqueiro de porcos, passou por essa experiência com um guarda, que praguejou: “O seu cérebro é ainda mais sujo do que isso, e cheira ainda pior! Pare imediatamente! Isso é um hábito burguês. Limpe antes o seu cérebro!” No início da Revolução Cultural, os alunos receberam um pequeno compêndio de Mao referente ao ensino, no qual o Grande Timoneiro condena o saber dos professores “incapazes de distinguir os cinco grãos” e que, “quanto mais aprendem, mais estúpidos se tornam”. Defende igualmente o encurtamento dos estudos e a supressão da seleção através de exames: a universidade deve formar “vermelhos”, e não “peritos”, e deve ser prioritariamente aberta aos “vermelhos” de nascimento.
Com experiência de duas ou três autocríticas, a maioria dos intelectuais tem pouca vontade de resistência. E os velhos escritores fazem uma pantomima, durante horas, do “avião”, até caírem esgotados, diante dos jovens que os insultam; desfilam pelas ruas com o boné de burro enfiado na cabeça; são muitas vezes espancados, brutalmente. Alguns morrem, muitos outros suicidam-se, (...) O sadismo e o fanatismo dos “revoltosos” carrascos são terríveis. Assim, na universidade de Xiamen (Fujian): “Certos [professores], incapazes de suportar as sessões de ataques e de críticas, adoeceram e morreram praticamente na nossa presença. Não senti qualquer pena deles, nem dos poucos que se atiraram pelas janelas, nem daquele que se lançou numa das nossas famosas fontes termais, onde morreu cozido”. (...)
(...) os templos foram trancados (mas muitos foram destruídos por vezes em autos-de-fé públicos, ou danificados), os tesouros escondidos, os afrescos recobridos com massa para sua proteção, os livros escondidos. Queimam-se os cenários e o guarda-roupa da ópera de Pequim, suprimida em proveito das “óperas revolucionárias de tema contemporâneo” da Senhora Mao, (...) A própria Grande Muralha é em parte destruída: usam-se os seus tijolos para a construção de chiqueiros. Zhou manda então murar parcialmente e proteger com tropas o Palácio Imperial de Pequim. Os diversos cultos são muito afetados: dispersão dos monges do célebre complexo budista dos montes Wutai, manuscritos antigos queimados, destruição parcial dos seus 60 templos; auto-de-fé de exemplares do Alcorão dos Uígures de Xinjiang, proibição de festejar o ano-novo chinês (...) saque dos túmulos “imperialistas” em certos cemitérios, quase-proibição das práticas cristãs, (...) Os Guardas Vermelhos, esses garotos tragicamente sérios, resolvem proibir esses “derivativos da energia revolucionária” que são os gatos, as aves e as flores (tornando-se, assim, contra-revolucionário plantá-las em seu jardim), e o primeiro-ministro tem de intervir para impedir que o sinal vermelho nos semáforos passe a significar “Avançar”. Nas grandes cidades — principalmente em Xangai —, grupos de adolescentes tosquiam sumariamente os cabelos compridos, rasgam com tesouras as calças justas, arrancam os saltos altos, abrem à força os sapatos de bico pontiagudo, obrigam as lojas a adotar nomes “convenientes” (...) Os contraventores arriscam-se a ver as suas portas seladas com um retrato de Mao, que seria sacrilégio rasgar. Os Guardas Vermelhos detêm os transeuntes nas ruas e obrigam-nos a recitar uma citação de Mao, à sua escolha. (...) O mais duro, para milhões de famílias “negras”, foram, no entanto, as revistas dos Guardas Vermelhos. Misturando procura de “provas” de supostos crimes, confisco de prata e de ouro (...) e vandalismo puro e simples, partem, pilham e muitas vezes confiscam parte dos objetos ou mesmo tudo no interior de uma residência. Humilhações, insultos e pancadas são quase obrigatórios para os revistados. Alguns defendem-se, o que é pior para eles; uma simples expressão de desdém, uma palavra levemente desrespeitosa, uma recusa de confessar onde estão escondidos os “tesouros”, e vem a chuva de pancadas, e muitas vezes o assassinato; ou então, na melhor das hipóteses, o saque generalizado da casa. (...)
juntando todos os períodos da Revolução Cultural, encarceramento de três a quatro milhões de quadros (num total de aproximadamente 18 milhões) e de 400.000 militares (...) Entre os intelectuais, 142.000 professores, 53.000 técnicos e cientistas, 500 professores de Medicina e 2.600 artistas e escritores teriam sido perseguidos, sendo muitos deles mortos ou levados ao suicídio. Em Xangai, (...) calcula-se oficialmente, em 1978, que dez mil pessoas teriam sido mortas com extrema violência devido aos excessos da Revolução Cultural. (págs. 616-623)
45.O primeiro pogrom. 'ouvimos, ao aproximarmo-nos da entrada principal da escola, gritos e vociferações. Alguns camaradas de classe corriam para nós, gritando: “A luta começou! A luta começou!” (...) vi um grupo de professores, 40 ou 50 no total, dispostos em filas, com a cabeça e a cara pintadas com tinta preta (...) Tinham pendurados ao pescoço cartazes com inscrições como “fulano de tal, autoridade acadêmica reacionária”, “beltrano, inimigo de classe”, “fulano, defensor da via capitalista”, “beltrano, chefe de bando corrupto” — todos qualificativos tirados dos jornais. Todos os cartazes estavam marcados com cruzes vermelhas, o que dava aos professores o aspecto de condenados à morte à espera da execução. Todos tinham na cabeça bonés de burro, nos quais estavam pintados epítetos semelhantes, e carregavam nas costas vassouras sujas, espanadores e sapatos.
Tinham também pendurado em seus pescoços baldes cheios de pedras. Avistei o diretor: o balde que carregava era tão pesado, que o fio metálico cortara-lhe profundamente a pele, e ele cambaleava. Todos descalços, batiam em gongos ou panelas dando a volta no campo, ao mesmo tempo que gritavam... “Eu sou o gângster fulano!” Finalmente, caíram todos de joelhos, queimaram incenso e suplicaram a Mao Zedong que “fossem perdoados pelos seus crimes”. (...) obrigaram essas pessoas a comer matérias das latrinas e insetos; submeteram-nas a choques elétricos; fizeram com que se ajoelhassem em cima de cacos de vidro; forçaram-nas à performance do “avião”, pendurando-as pelos braços e pelas pernas.
Os primeiros a pegar nos porretes e a torturar foram os bárbaros da escola: filhos de quadros do Partido e de oficiais do exército [...] Grosseiros e cruéis, eles estavam habituados a jogar com a influência dos pais e a brigar com os outros alunos. Sendo de tal modo incompetentes nos estudos, eles estavam pa­ra ser expulsos, e culpavam provavelmente os professores por esse fato. Encorajados pelos provo­ca­do­res, os outros alunos gritavam: “Batam neles!”, e, lançando-se contra os professores, davam-lhes murros e pon­tapés. Os mais tímidos foram obrigados a apoiá-los, gritando a plenos pulmões e erguendo o punho. (...)
O professor Chen, que tinha mais de 60 anos e sofria de hipertensão, foi arrastado para fora às 11h 30min, exposto ao sol do verão durante mais de duas horas, e depois forçado a desfilar com os outros carregando um cartaz e batendo num gongo. Em seguida, arrastaram-no para o primeiro andar de um edifício escolar, depois novamente para baixo, batendo-lhe com os punhos e com cabos de vassoura ao longo de todo o trajeto. (...) O professor Chen desmaiou várias vezes, mas eles faziam-no voltar a si jogando baldes de água fria em seu rosto. Quase não conseguia mexer-se: tinha os pés cortados pelos vidros e rasgados pelos espinhos. (...) “Por que não me matam?” — gritava. “Matem-me!”
Isso durou seis horas, até que ele perdeu o controle dos seus excrementos. Os atormentadores ten­ta­ram enfiar um bastão no reto. Caiu pela última vez. (...) chamaram o médico da escola e disseram-lhe: “Verifique cuidadosamente se ele morreu mesmo de hipertensão. Você não tem o direito de defendê-lo!” O médico examinou-o e declarou que tinha morrido em conseqüência de torturas. Então, alguns o agarraram e começaram a bater nele (...) o médico acabou escrevendo na certidão de óbito: “Morte devida a um súbito ataque de hipertensão”. (págs. 623-625)
46.Os revolucionários e seu Mestre. Lenda dourada: durante muito tempo, o Ocidente considerou os Guar­das Vermelhos como primos, apenas um pouco mais fanáticos, dos revolucionários de 68, seus contempo­râ­neos. (...) A energia imensa dessas dezenas de milhões de jovens foi puramente destrutiva (...) não fize­ram estritamente nada e não modificaram em nenhum ponto assinalável os princípios básicos do totalita­ris­mo instalado. Os Guardas Vermelhos pretenderam freqüentemente imitar os princípios da Comuna de Paris de 1871, (...) tudo era decidido por minúsculos aparelhos auto-proclamados; a alternância só se fazia à força, em conflitos constantes, no interior das organizações e das estruturas administrativas que conse­guiram controlar.­­“ (págs. 625-626)
Resumo: a Revolução Cultural degenerou em anarquia, multiplicaram-se as lutas entre gangues revolucionárias. Os distúrbios paralisavam cidades inteiras, a produção despencou, não havia de fato administração e alguns grupos saiam de controle. O Exército foi a única instituição que ficou cuidadosamente a resguardo. Por fim, Mao ordenou ao Exército Vermelho liquidar com a Revolução Cultural. A repressão foi violentíssima e a maior causa de mortes durante a Revolução Cultural, por vezes utilizou artilharia pesada e napalm. O futuro presidente do PC chinês Hua Guofeng, ganhou-se o título de “carniceiro de Hunan”.
47.”Em 1986, os efetivos nas prisões caíram para cerca de cinco milhões (e não voltarão a subir depois): menos da metade de 1976 e, com 0,5% da população total, (...)
A presunção de inocência continua a não ser admitida, o crime contra-revolucionário não foi retirado dos códigos (...) Em dezembro de 1994, o termo “laogai” foi substituído pelo mais banal “prisão”, mas a Gazeta Legal acha conveniente precisar: “A função, o caráter e as tarefas da nossa administração penitenciária permanecerão inalterados” A maior parte dos julgamentos decorre sem a presença do público, e os processos continuam freqüentemente expeditivos (...) e não motivados. (...)
A China, com vários milhares de execuções todos os anos, é responsável por mais de metade das exe­cuções que ocorrem em todo o planeta; e o número continua aumentando em relação ao final dos anos 70 (...) Em 1983, o aumento da criminalidade provocou talvez um milhão de detenções, e provavelmente um mínimo de dez mil execuções (...) tenta-se amalgamar todos os elementos perturbadores: muitos intelectuais, sacerdotes e estrangeiros foram importunados quando da campanha Contra a Poluição Espiritual, lançada logo em seguida. Quanto à ocupação da Praça de Tian'anmen (...) : mil mortos aproximadamente, talvez dez mil feridos em Pequim, centenas de execuções na província, muitas vezes mantidas em segredo ou disfarçadas sob a capa de casos de delito comum; cerca de dez mil prisões em Pequim, 30 mil em toda a China. (...) as represálias contra as famílias, prática que se julgaria abandonada, recomeçaram em grande escala (págs. 642-643)




Coréia do Norte, Vietnã e Laos: a semente do Dragão

Crimes, terror e segredo na Coréia do Norte, Pierre Rigoulot
Vietnã: os impasses de um comunismo de guerra, Jean-Louis Margolin
Laos: populações em fuga, Pierre Rigoulot
Camboja: no país do crime desconcertante, Pierre Rigoulot


Resumo: O capítulo sobre a Coréia do Norte afirma que é um comunismo calcado no modelo soviético, iniciado com reforma agrária, etc., e que a partir de um certo momento teve ajuda decisiva da China. Apresenta a guerra da Coréia como um exemplo raro de premeditação de guerra expansiva comunista. Descreve os campos, as violências, torturas, execuções, terrorismo contra os intelectuais, promoção de atentados criminais no exterior, “crimes” definidos pelo sistema, expurgos, ditadura e fome espantosa pela quebra da produção agrária. Como saldo final calcula:
48.”podemos adicionar aos 100.000 mortos em conseqüência dos expurgos no interior do Partido do Tra­ba­lho, 1,5 milhão de mortos devido ao internamento concentracionário e 1,3 milhão de mortos na seqüência da guerra desejada, organizada e desencadeada pelos comunistas uma guerra inacabada que aumenta re­­gu­lar­mente a quantidade das vítimas devido a operações pontuais, mas mortíferas (ataques de comandos nortecoreanos contra o Sul, atos de terrorismo, etc.). Haveria que se adicionarem a esse ba­lan­ço as vítimas diretas e sobretudo indiretas da subnutrição. É nessa área que hoje faltam mais dados, mas tam­bém é aí que, agravando-se a situação, os elementos podem, dramaticamente e muito proximamente, tornar-se mais pesados. Mesmo que nos contentemos, desde 1953, com 500 mil vidas perdidas devido à fra­gi­lização face às doenças, ou diretamente provocadas pela escassez alimentar (...) chegamos, para um país com 23 milhões de habitantes e submetido a um regime comunista durante 50 anos, a um resultado global de três milhões de vítimas.” (pág. 671)
Resumo: O capítulo sobre o Vietnã é muito breve. Faz um histórico da guerra e um apanhado geral das vítimas causadas pelo comunismo, métodos, etc.
49.”É no momento em que a vitória parece possível, em dezembro de 1953, que se resolve lançar a reforma agrária nas zonas libertadas. (...) O seu ritmo, bem como os seus objetivos, são os mesmos da reforma agrária chinesa (...) Mas os métodos, ferozes e deliberadamente mortíferos, são também os aplicados no grande vizinho do Norte: em cada povoado, os ativistas “atiçam” — muitas vezes com dificuldade — os camponeses classificados como pobres e médios (por vezes com a ajuda de grupos de teatro), depois segue-se o “processo de rancor” contra a ou as vítimas, bodes expiatórios, com freqüência escolhidas arbitrariamente (há uma quota a respeitar: de 4% a 5% da população os eternos 5% do maoísmo), e a morte, ou pelo menos a prisão e o confisco dos bens; o opróbrio é alargado a toda a família — como na China. [a Sra Lang, mãe de dois vietcongs] Esgotada pela detenção, acabou por confessar tudo e foi condenada à morte. O seu filho, que se encontrava na China, foi chamado de volta ao país, aviltado, despojado das suas condecorações e condenado a 20 anos de prisão.” Tal como em Pequim, alguém torna-se culpado apenas por ser acusado, uma vez que o Partido não se engana jamais. (...) Mais valia ter matado o pai e a mãe e confessá-lo do que nada dizer sem ter feito mal algum”.
O desencadear de violência é alucinante. O tema do ódio contra o adversário — de classe ou não — é repisado: segundo Lê Duc Tho, futuro Prêmio Nobel da Paz juntamente com Henry Kissinger, “se se pretende levar os camponeses a pegarem em armas, é preciso de imediato despertar neles o ódio ao inimigo “. Em janeiro de 1956, o órgão oficial do PC, Nhan Dan, escreve: “A classe dos latifundiários nunca se manterá sossegada enquanto não for eliminada.” Como acontece ao norte da fronteira, a palavra de ordem é: “Antes dez mortos inocentes do que um só inimigo sobrevivente.” (...)
A paranóia quebra todas as barreiras: heróis da guerra da Indochina são assassinados ou internados em campos de concentração. (...) As baixas, dificilmente quantificáveis, são de qualquer modo catastróficas: provavelmente em torno de 50.000 execuções nas zonas rurais (excluindo qualquer combate), ou seja, de 0,3% a 0,4% da população total (estamos muito próximos da taxa média de vítimas provocadas pela reforma agrária chinesa); entre 50.000 e 100.000 pessoas teriam sido presas; estima-se em 86% a proporção de depurados nas células rurais do Partido, chegando por vezes aos 95% de exclusões entre os quadros da resistência antifrancesa. (...)
Entre 1952 e 1956, a “ retificação,” torna-se quase permanente. Em certos “Seminários”, a tensão é tal, que se torna necessário retirar lâminas e facas aos homens e deixar a luz acesa durante toda a noite para tentar prevenir os suicídios. É no entanto do exército que virá o fim do expurgo. As perseguições atingem tão dura mente os seus quadros, que eles começam a reagir com freqüência através da deserção e da passagem para o Vietnã do Sul, que a instituição se assusta” (pág. 675-677)”
50.          “Viva Ho Chi Minh!
O farol do proletariado!
Viva Stalin, a grande árvore eterna!
Abrigando a paz à sua sombra!
Matem, matem de novo, que a mão não pare um minuto;
Para que arrozais e terras produzam arroz em abundância,
Para que os impostos sejam cobrados rapidamente.
Para que o Partido perdure, marchemos em conjunto com a mesma energia.
Adoremos o presidente Mao,
prestemos um culto eterno a Stalin.” (págs. 678-679)
51.”Durante algumas breves semanas, o milhão de antigos funcionários e militares do regime de Saigon pôde mesmo acreditar que a tão exaltada “política de clemência do presidente Ho” não seria demagogia; assim, eles não temeram registrar-se junto às novas autoridades. Depois, no início de junho, eles foram convocados para reeducação — ”por três dias” para os simples soldados, e “por um mês” para os oficiais e altos funcionários. Na realidade, os três dias transformaram-se em três anos, e o mês em sete ou oito anos; os últimos sobreviventes “reeducados' só regressaram em 1986. (...) as estimativas credíveis variam entre 500.000 e um milhão (numa população de cerca de 20 milhões de habitantes) (...)
Inúmeros campos, próximos das cidades, não têm arame farpado, e o regime é mais constrangedor do que penoso. Para os “casos difíceis”, pelo contrário, é o envio para as terras altas do Norte, insalubres e longínquas. (...) o isolamento é absoluto, os cuidados médicos mí­ni­mos, e a sobrevivência depende muitas vezes do envio de víveres pelas famílias, que se arruínam para con­se­gui-lo. A subnutrição é igual­men­te dramática nas prisões (200 gramas diários de um arroz aver­me­lha­do cheio de pedras) (...) Acu­mu­lam-se 70 ou 80 presos numa cela para 20, e qualquer passeio é invia­bi­li­zado pela construção apres­sa­da de novos edifícios de detenção no pátio (...) O clima tropical e a falta de arejamento tornam a res­pi­ra­ção difícil (os presos revezam-se durante todo o dia diante de uma única e minúscula abertura), os chei­ros são insuportáveis, as doenças de pele permanentes. A própria água é seve­ramente racionada. (...) A tortura está dissimulada, mas presente, como as execuções; o isolamento san­ciona a menor transgres­são do regulamento nesses lugares, come-se tão pouco, que o resultado mais pro­vável é a morte ao fim de algumas semanas. (...) haveria que se acrescentar o calvário das centenas de milhares de boat-people que fogem à repressão e à miséria e que muitas vezes morrem afogadas ou assas­sinadas pelos piratas.” (págs. 680-682)
Resumo: O caso do Laos está intimamente ligado à queda do Vietnã. Por volta de 300.000 pessoas (10% do total) fugiu do país. 45.000 delas morreram nas estradas. Nesse total inclui-se o 90% dos intelectuais, técnicos y funcionários do país. Em 1991, 55.000 laosianos aguardavam um destino nos campos de refugiados da Tailândia.
52.”A quase-totalidade dos funcionários do antigo regime (cerca de 30.000) foi enviada para “seminários” — ou, mais exatamente, para campos de reeducação, freqüentemente para as províncias do Norte e do Leste, longínquas, insalubres e próximas do Vietnã; por lá ficaram cinco anos, em média. Os “criminosos” mais empedernidos (oficiais do exército e da polí­cia), cerca de 3.000, foram internados em campos de re­gi­me severo nas ilhas Nam Ngum. A própria antiga família real foi presa em 1977, e o último príncipe her­deiro morreu na prisão. Tudo isto ajuda a explicar o grande número de fugas do país, elas próprias, por vezes, origem de dramas: não era raro os soldados dispararem sobre os fugitivos.” (pág. 683-685)
Resumo: Os métodos genocidas dos Khmers Vermelhos já eram conhecidos pela população antes da queda de Phnom Penh. Os guerrilheiros comunistas tinham praticado morticínios de massa e esvaziados cidades inteiras durante a guerra que precedeu à tomada da capital. (cfr. p. 691)
53. “O esvaziamento integral de Phnom Penh, (...) A população não sofreu naquela ocasião brutalidades sistemáticas, embora não tenham faltado os recalcitrantes mortos “para servir de exemplo”, nem a execução dos soldados derrotados. Os deportados não são em geral despojados dos seus haveres, nem sequer revistados. As vítimas diretas e indiretas da evacuação — feridos ou operados expulsos dos hospitais, velhos ou doentes isolados; igualmente, numerosos suicidas, por vezes famílias inteiras... — foram talvez cerca de dez mil, em dois a três milhões de habitantes da capital, e algumas centenas de milhares no que respeita às outras cidades (de 46% a 54% da população total teriam sido jogados nas estradas!). É o traumatismo que fica, indelével, na memória dos sobreviventes. Eles tiveram de deixar as suas casas e os seus bens em menos de 24 horas, embora um pouco tranqüilizados pela mentira piedosa de que “é apenas por três dias”, mas estonteados por um turbilhão humano onde era fácil perder-se, por vezes definitivamente, os parentes. Soldados inflexíveis, que nunca sorriam, os arrastavam: (...) Foram aterrorizados com cenas de morte e de desespero, e não receberam em geral a menor ajuda (alimentos, cuidados... ) dos Khmers Vermelhos durante um lento êxodo, que para alguns durou semanas.
Essa primeira deportação correspondeu também à primeira triagem dos ex-urbanos, feita nos cruzamentos de estradas. (...) Sob o pretexto de poder servir ao novo regime na capital, ou de ir acolher condignamente Sihanuk, chefe de Estado nominal até 1976, procurava-se selecionar o maior número de funcionários de grau médio ou superior, e sobretudo de oficiais do exército. A maioria foi imediatamente liquidada, ou pereceu pouco depois na prisão.” (págs. 692-693)
54.”Gerir inteiramente os enormes fluxos de citadinos estava ainda fora do alcance do fraco aparelho khmer vermelho, geralmente estimado, em 1975, em cerca de 120.000 militantes e simpatizantes (na sua maioria muito recentes), metade dos quais combatentes.” (pág. 693)
55.”A afluência dos citadinos perturbava a vida rural e o equilíbrio entre recursos e consumo: nas férteis planícies de arrozais da região 5 (Noroeste), aos 170.000 habitantes de origem juntavam-se 210.000 recém-chegados! Além disso, o PCK fez de tudo para aumentar o abismo entre o “antigo povo”, ou povo de base, por vezes designado como “70” porque estiveram de um modo geral sob o domínio dos Khmers Vermelhos desde o princípio da guerra - e o ­“novo povo”, ou “75 “, ou ainda “ 17 de abril”. Ele estimulou o “ódio de classe” dos “Proletários patriotas” contra os “capitalistas-lacaios dos imperialistas”. (...) apenas os “antigos” (...) tinham alguns direitos, em especial, no princípio, o de cultivar uma parcela privada, e o de comerem na cantina obrigatória antes dos outros, e um pouco melhor; (...) Do lado dos “antigos”, tudo se fez para opor os “camponeses pobres” aos latifundiários aos “camponeses ricos” e aos ex-comerciantes (rapidamente a coletivização passou a ser total). (...) os antigos servidores do Estado e dos intelectuais. O destino dessas duas últimas categorias foi geralmente infeliz: (...) elas foram “expurgadas”, muitas vezes até ao seu completo desaparecimento.” (págs. 694-695)
56.”Freqüentemente, é proposto aos Novos que “regressem ao seu povoado natal”, ou que vão trabalhar para uma cooperativa menos dura, menos insalubre, com melhor alimentação. Invariavelmente, os voluntários (muitas vezes numerosos) viam-se enganados e atirados para um lugar ainda mais sinistro, mais mortífero. Pin Yathay, ele próprio vítima desse logro, soube decifrar o enigma: “Tratava-se, realmente, de uma sondagem para detectar as tendências individualistas. [...] o citadino provava que não se libertara das suas lastimáveis propensões. (...) Apresentando-nos como voluntários, denunciávamo-nos a nós mesmos.” (págs. 695-696)
57.A época dos expurgos e dos grandes massacres (1976-1979). (...) Um estudo da CIA, baseado em dados apro­ximados, estima o déficit demográfico total (incluindo a diminuição do número de nascimentos indu­zi­da pelas dificuldades) em 3.800.000 pessoas entre 1970 e 1979 (as perdas da guerra de 1970-1975 es­tão, portanto, incluídas), para uma população subsistente em 1979 de cerca de 5.200.000 habitantes. (...) A ruralização forçada dos citadinos (...) fez, no máximo, 400.000 vítimas (...) Henri Locard, raciocinando por extrapolação, atribui só às prisões — o que deixa de lado as execuções “no local”, também elas numerosas — pelo menos de 400.000 a 600.000 vítimas; Sliwinski afirma um total de um milhão de assassinatos. A doença e a fome foram sem dúvida as mais mortíferas, com provavelmente, no mínimo, 700.000 mortos; Sliwinski fala de 900.000, incluindo os efeitos diretos da ruralização.” (págs. 700-703)
58.Alvos e suspeitos. (...) A mortalidade é muito forte nos ex-citadinos: dificilmente se encontra uma família intacta. Ora, trata-se de cerca de metade da população total. Assim, em cada 200 famílias instaladas num povoado da zona Norte, cerca de 50 sobreviviam em janeiro de 1979, e apenas uma tinha perdido “só” os avós. (...) Os monges (...) foram sistematicamente eliminados. (...) Em escala nacional, de 60.000 ficariam reduzidos a cerca de um milhar. A quase-totalidade dos fotógrafos de imprensa desapareceu. (...) segundo Sliwinski, 82,6% dos oficiais do exército republicano, 51,5% dos diplomados do ensino superior e principalmente 41,9% dos residentes de Phnom Penh desapareceram. (...) O punhado de católicos cambojanos foi, segundo Sliwinski, o grupo étnico ou religioso mais martirizado: 48,6% de desaparecidos.” (págs. 703-706)
59.”a insensibilidade niveladora do regime impunha grosso modo as mesmas normas de produção, geralmente sem fornecer o mínimo apoio. (...) Pin Yathay avalia a mortalidade de um campo florestal, no final de 1975, em um terço em quatro meses; no povoado de arroteamento de Don Ey, a fome é geral, deixa de haver nascimentos e registram-se talvez 80% de mortos no total.” (págs. 708-709)
60.A morte cotidiana no tempo de Pol Pot. “No Kampuchea Democrático, não havia prisões, nem tribunais, nem universidades, nem liceus, nem moeda, nem correios, nem livros, nem prática de esportes, nem distrações... Não era tolerado qualquer tempo morto numa jornada de 24 horas. A vida cotidiana dividia-se assim: 12 horas de trabalhos físicos, duas horas para comer, três horas para repouso e educação, sete horas de sono. (...) Os Khmers Vermelhos utilizavam freqüentemente parábolas para justificarem os seus atos e ordens contraditórios. Comparavam o indivíduo a um boi: 'Vocês vêem esse boi que puxa o arado. Ele come onde nós mandamos. Se o deixarmos pastar nesse campo, ele come. Se o levarmos para outro campo onde não haja erva suficiente, ele pasta, apesar de tudo. Não se pode deslocar. É vigiado. E, quando lhe dizemos que puxe o arado, ele o puxa. Ele nunca pensa na mulher, nem nos filhos.'“
“Perder-te não é uma perda. Manter-te não tem qualquer utilidade” — todos os testemunhos referem essa temida fórmula. Foi efetivamente uma descida ao inferno o que viveram os cambojanos, alguns desde 1973 (pág. 711)
61.”convinha aceitar a sua nova condição, intermediária (...) entre a de uma besta de carga e a de um escravo de guerra”. (...) eles tinham de habituar-se ao desa­­parecimento de qualquer espécie de ensino, de qualquer liberdade de deslocamento, de qualquer comércio lícito, de qualquer medicina digna desse nome, da religião, da escrita, assim como à imposição de normas estritas de vestimenta (uniforme negro, de mangas compridas, abotoado até ao pescoço) e de com­portamento (nada de demonstrações de fato, nada de disputas ou de injúrias, nada de queixumes ou de choros). Tinham de obedecer cegamente a todas as ordens, assistir (com o ar de quem escuta aten­ta­men­te) às intermináveis reuniões, gritar ou aplaudir à ordem, criticar os outros e autocriticar-se (...) ­mesmo uma deficiência física evidente não evitava a sanção aplicada aos “preguiçosos”, e aos inca­pazes: a morte. (...) A fuga se assemelha muitas vezes a um suicídio adiado: tentada freqüentemente sem bússola e sem mapa, normalmente na estação das chuvas, a fim de ser perseguido ou detectado com maior dificuldade, com provisões insuficientes e o organismo enfraquecido pelas privações­­ (...) uma grande maioria dos fugitivos desapareceu, antes mesmo de ser localizada por uma even­tual patrulha khmer vermelha, que tinha ordens para não mostrar qualquer clemência. (págs. 712-713)
62.A desorganização dos campos. Dos dois lados da estrada, arrozais abandonados estendiam-se a perder de vista. Procurei em vão os trabalhos de transplantação. Nada, a não ser, após cerca de dez quilômetros, um grupo de trabalho composto por algumas moças. (...) Grupos de homens e mulheres perambulavam de um lugar a outro, com ar vago, de trouxa nos ombros. Pelo seu vestuário, roupas andrajosas, outrora de cores vivas, calças justas ou saias rasgadas, adivinhava-se que eram “novos”, antigos citadinos banidos da cidade. Esses citadinos tinham sido, numa primeira fase, enviados para as regiões privadas de recursos do Sudoeste, nas quais, diante da miséria total, deviam passar a ter uma “nova concepção do mundo”. (...) Morria-se de fome em todo o país, embora somente um quinto das terras semeadas fosse explorado! (...) Arregalei os olhos. O espetáculo era terrível: uma miséria humana indescritível, uma desorganização total, um desperdício lamentável...” (pág. 715)
63.”A irrigação era a pedra angular do Plano (...) Ao lado de alguns diques, canais ou barragens bem-con­ce­bi­dos (...) quantos foram levados na primeira enxurrada (afogando eventualmente algumas centenas de cons­tru­tores ou de camponeses), quantos fizeram circular a água em sentido inverso, quantos se enche­ram de lodo em poucos meses (...) Esse desprezo pela técnica e pelos técnicos era acompanhado por uma rejei­ção do mais elementar bom senso camponês (...) O calendário dos trabalhos agrícolas era determi­na­do para uma região inteira, fossem quais fossem as condições ecológicas locais. (...) alguns quadros acha­ram por bem cortar a totalidade das árvores nas zonas cultivadas, incluindo as árvores frutíferas; para destruir o abrigo de alguns pardais, que prejudicavam a plantação, eliminavam-se fontes de alimen­tação da população esfomeada. (...)
A fome que atingiu milhões de cambojanos durante anos foi também utilizada, conscientemente, pa­ra melhor escravizar. Seres enfraquecidos, incapazes de constituírem reservas de alimentos, eram menos tentados a fugir. Permanentemente obcecados com a alimentação, a mola real do pensamento autônomo, a contestação e a própria sexualidade era quebrada entre eles. (...) um regime que tinha querido sacri­fi­car tudo à mística do arroz (...) tornou esse alimento cada vez mais mítico. O Camboja exportava regu­larmen­te, desde os anos 20, centenas de milhares de toneladas de arroz por ano, alimentando, frugal mas corretamente, a massa da sua população. Ora, uma boa parte dos cambojanos passou a conhecer apenas a sopa de arroz rala (contendo aproximadamente o equivalente a quatro colheres de café de arroz por pessoa), desde que as cantinas coletivas foram generalizadas, no início de 1976. (...)
Nada escapava à fome violenta dos famintos, (...) nem as formigas vermelhas ou as grandes aranhas devoradas cruas, nem os rebentos, cogumelos e tubérculos da floresta, os quais, mal selecionados ou insuficientemente cozinha­dos, provocavam um grande número de mortes. Atingiram-se extremos insuspeitos, mesmo para um país pobre: disputar com os porcos o farelo da sua gamela, ou fazer um banquete com ratos do campo. (...)
Houve também “as doenças da fome”, das quais a mais corrente, e a mais grave, era o edema generalizado (...) O doente, sempre suspeito de ser um preguiçoso, só podia deixar de trabalhar na condição de ir para a enfermaria ou para o hospital, onde as rações alimentares eram reduzidas à metade e onde o risco de epidemias era muito elevado.” (págs. 715-718)
64.Da destruição das referências à animalização. (...) O canibalismo vingativo também existia, como na China: Ly Heng evoca o caso de um soldado khmer vermelho, desertor, forçado, antes de ser executado, a co­mer as suas próprias orelhas. O consumo de fígado humano é o mais citado, (...) Haing Ngor relata a extir­pação, numa prisão, do feto, do fígado e dos seios de uma mulher grávida assassinada; o feto é jogado fora (onde outros já se encontram secando dependurados na beirada do telhado do cárcere), o resto é levado, com esse comentário: “Esta noite temos fartura de carne!” Ken Khun recorda um chefe de cooperativa preparando um remédio para os olhos a partir de vesículas biliares humanas (e distribuin­do-o liberalmente pelos seus subordinados!) enquanto exaltava as qualidades palatales do fígado humano (...) Paradoxo do regime dos Khmers Vermelhos: afirmando querer implementar uma sociedade de igualdade, de justiça, de fraternidade, de abnegação, e, tal como os outros poderes comunistas, provocou-se um desencadeamento espantoso de egoísmo, do cada um por si, de desigualdade no poder, de arbitrariedade. Para sobreviver, era necessário sobretudo, e antes de mais nada, saber mentir, enganar, roubar e permanecer insensível.” (págs. 719)
65.”os maridos ficavam longe das esposas por semanas a fio, ou mais; os filhos eram afastados dos pais; os ado­lescentes podiam passar seis meses sem autorização para ver a família, sem notícias, para por vezes des­cobrirem, quando regressavam, que todos haviam morrido. (...) Não era bem visto uma mãe dedicar-se demasiado ao filho, mesmo pequeno. O poder dos maridos sobre as esposas, dos pais sobre os filhos foi abolido: podia-se ser executado por ter esbofeteado a esposa, ser denunciado pelos filhos por lhes ter batido, ou forçado à autocrítica por uma injúria ou uma discussão. (...) devemos ver nes­ses aspectos a vontade (...) de dissipar todas as relações de autoridade.” (pág. 720)
66.”'Não sou um ser humano, sou um animal', conclui na sua confissão o antigo dirigente e ministro Hu Nim. O homem vale só o mesmo que o animal? Podia-se perder a vida por deixar um boi fugir, e ser torturado até à morte por ter batido em um. Houve homens amarrados a arados e fustigados sem piedade por não se terem mostrado à altura da vaca que ajudavam. A vida humana tem um preço tão baixo... “Você tem tendências individualistas. [...] Você deve [...] se libertar dos seus sentimentos”, retorquia um soldado khmer vermelho a Pin Yathay, que pretendia manter junto de si o filho ferido. (...) Tendo ido ajudar uma vizinha gravemente doente e os seus dois filhos, ouviu esta observação de um Khmer Vermelho: 'Não é seu dever ajudá-la; pelo contrário, isso prova que você ainda tem piedade, sentimentos de amizade. É preciso renunciar a esses sentimentos e extirpar do seu espírito as propensões individualistas. Volte imediatamente ao seu lugar.'“ (pág. 721)
67.”[a morte] era quase sempre discreta, oculta. Haverá quem associe essa discrição no assas­sinato à in­va­riá­vel delicadeza dos militantes e quadros do PCK: “As suas palavras eram cordiais, muito doces, até nos piores momentos. Chegavam ao assassinato sem perderem a cortesia. Adminis­tra­vam a morte com pala­vras afáveis. [...] Eram capazes de fazer quaisquer promessas que quiséssemos ouvir para anestesiar a nossa desconfiança.­­ (...) Os Khmers Vermelhos eram delicados em quaisquer circunstâncias, mesmo antes de nos abaterem como gado.” (...) “Matavam-se constantemente homens e mulheres para fazer adubo. Enterravam-se os cadáveres em valas comuns que eram onipresentes nos campos de cultivo, sobretudo nos de mandioca. Com freqüência, ao arrancar os tubérculos de mandioca, desenterrava-se um crânio humano através de cujas órbitas saíam as raízes da planta comestível.” (...) seja lícito ver aqui, em paralelo com o canibalismo (dos quadros), o ponto culminante da negação da humanidade dos “inimigos de classe”.
A selvageria do sistema reaparece no momento supremo, o da execução. Para poupar as balas, mas tam­bém sem dúvida para satisfazer o freqüente sadismo dos executores, o fuzilamento não é o mais corren­te: apenas 29% das vítimas, segundo o estudo de Sliwinski. Em compensação, seriam contados 53% de crânios esmagados (com barras de ferro, com cabos de enxada), 6% de enforcados e asfixiados (com saco plástico), 5% de decapitados e de espancados até à morte. Confirmação da totalidade dos teste­mu­nhos: somente 2% de assassinatos teriam ocorrido em público. Entre esses, um número significativo de exe­cuções “exemplares” de quadros caídos em desgraça, utilizando métodos particularmente bárbaros, em que o fogo (purificador?) parece desempenhar um papel relevante: enterramento até o peito numa vala cheia de brasas; cremação das cabeças com petróleo. (págs. 727-729)
68.Crianças numa prisão de distrito. O que mais nos comovia era a sorte de 20 crianças, sobretudo filhos de pessoas deportadas depois de 17 de abril de 1975. Essas crianças roubaram porque tinham muita fome. Estavam presas não para serem punidas, mas para serem mor­tas de uma forma particularmente selvagem:
— os guardas de prisão batiam-lhes ou chutavam-nas até à morte;
— faziam delas brinquedos vivos; amarravam-nas pelos pés, penduravam-nas no teto, balançavam-nas, e depois tentavam estabilizá-las com chutes;
— perto da prisão havia um pântano; os carrascos atiravam para lá os pequenos prisioneiros, empurravam-nos para o fundo com os pés, e quando os desgraçados eram atacados por convulsões, deixavam a cabeça emergir, para recomeçarem de imediato a mergulhá-los à força na água.” (págs. 730-732)
69.Uma exceção khmer? (...) O triunfalismo não conhecia limites: “Estamos em vias de fazer uma revolu­ção única. Conhece algum país que ouse, como nós, suprimir o mercado e a moeda? Nós batemos de longe os chineses, que nos admiram. Eles tentam imitar-nos, mas ainda não o conseguiram. Seremos um bom mode­lo para o mundo inteiro — tal é o discurso de um intelectual pertencente aos quadros do Partido que viajou pelo estrangeiro. Mesmo depois de ter sido afastado do poder, Pol Pot continuou a considerar que o 17 de abril de 1975 foi o maior acontecimento revolucionário da História, “com exceção da Comuna de Paris, em 1871”. (págs. 734-735)
70.”durante uma dezena de anos, Haing Ngor ouviu os sol­dados khmers vermelhos dizerem: “Agora, nada de livros capitalistas! Os livros estrangeiros são ins­tru­mentos do Antigo Regime que traiu o país. Por que é que você tem livros? Você é agente da CIA?” Convinha também queimar diplomas, assim como bilhetes de identidade, e até álbuns de fotografias: a revolução é o recomeço a partir do zero. (...) “Só o bebê recém-nascido não tem mancha” garantia um slogan. A educação foi reduzida à sua expressão mais simples: ou seja, nenhuma escola ou, na maior parte dos casos, alguns cursos de leitura, de escrita e sobretudo de cânticos revolucionários, entre os 5 e os 9 anos, habitualmente não mais de uma hora diária; os próprios professores eram muitas vezes fracamente alfabetizados. A única coisa que contava era o saber prático: longe da inútil cultura livresca, “as nossas crianças das zonas rurais sempre tiveram conhecimentos muito úteis. Sabem diferençar a vaca calma da nervosa. Sabem agüentar-se sobre um búfalo nos dois sentidos. São os senhores do rebanho. Praticamente, tornaram-se senhores da natureza. (...) Conhecem e compreendem verdadeiramente esse tipo de saber está muito adaptado à realidade da nação”.” (págs. 739-740)
71.”os soldados khmers vermelhos. São recrutados aos 12 anos, por vezes menos (...) Os jovens recrutas per­diam todos os contatos com a família, e geralmente com o povoado natal. (...) honrados pelo poder, eles se achavam todo-poderosos (...) a motivação de muitos, confessada até por alguns fugitivos, era “não precisar trabalhar e poder matar pessoas”. Os que tinham menos de 15 anos eram os mais temíveis: “Eles eram recrutados muito novos, e só lhes era ensinada a disciplina. Simplesmente obedecer às ordens, sem necessidade de justificação [...] Não acreditavam nem na religião nem na tradição, mas apenas nas ordens dos Khmers Vermelhos. Era por isso que matavam o seu próprio povo, bebês inclusive, como se matam mosquitos.” (...)
Picq descreve a “formação” acelerada de um contingente de crianças dos campos: “Explicaram-lhes que a primeira geração de quadros tinha traído e que a segunda não era melhor do que a primeira. Por isso, eles seriam chamados a substituí-la muito rapidamente “Foi entre essa nova geração que apareceram as crianças-médicos. Elas eram seis meninas de 9 a 13 anos. Mal sabiam ler, mas o Partido confiou a cada uma delas uma caixa de seringas.  (...) “As nossas crianças-médicos — eles nos diziam — são oriundas do campesinato. Elas estão prontas a servir a sua classe. (...) mas ninguém contara com a embriaguez que proporciona o saber dar uma injeção! Muito rapidamente, as crianças-médicos mostraram-se de uma arrogância e de uma insolência sem precedentes.”“ (págs. 740-741)
72.O mundo novo”. “A nossa escola é o campo. A terra é o nosso papel, o arado a nossa caneta: escre­vere­mos com nosso trabalho! Os certificados e os exames são inúteis; saibam trabalhar e saibam abrir os ca­nais: eis os novos diplomas de vocês! E, quanto aos médicos, tampouco precisamos deles! Se alguém ne­ces­sitar que lhe retirem os intestinos, eu próprio me encarregarei disso!” Fez o gesto de eventrar alguém com uma faca, para o caso de algum de nós não ter percebido a alusão.
“Como vocês vêem, é fácil, não é necessário ir à escola para isso! Também não necessitamos de profissões capitalistas como os engenheiros e os professores! Não precisamos de professores em escolas para nos dizer o que é preciso fazer; eles são todos corruptos. (...) No entanto, camaradas... há pessoas que recusam o trabalho e o sacrifício Há agitadores que não possuem a boa mentalidade revolucionária... Esses, camaradas, são os nossos inimigos! E alguns deles encontram-se aqui mesmo, esta noite!” A assistência foi invadida por um sentimento de mal-estar que se traduziu em diversos movimentos. O Khmer Vermelho prosseguia, olhando para cada rosto à sua frente.
“Essas pessoas não largam a velha maneira de pensar capitalista! Podemos reconhecê-las: vejo entre nós quem ainda usa óculos! E usam óculos por quê? Será que não podem ver-me se eu lhes der uma bofetada?” Avançou bruscamente para nós, de mão erguida: “Ah! Eles fogem com a cabeça. Portanto, podem ver-me; portanto, não têm necessidade de óculos! Usam óculos para seguir a moda capitalista, julgando que isso os torna belos! Nós não temos necessidade disso: aqueles que desejam ser belos são preguiçosos e exploradores que sugam a energia do povo!”
Sucederam-se discursos e danças durante horas. Finalmente, todos os quadros se alinharam gritando a uma só voz: “O-SANGUE-VINGA-O-SANGUE!” Ao pronunciar a palavra “sangue”, batiam no peito com o punho; ao gritar “vinga”, saudavam de braço estendido e punho cerrado. “O-SANGUE-VINGA-O-SANGUE! O-SANGUE-VINGA-O-SANGUE!” Com expressões tensas, cheias de uma determinação selvagem, gritavam os slogans ao ritmo das pancadas no peito, terminando essa assustadora demonstração com um vibrante: “Longa vida à revolução cambojana!” (pág. 743)
73.”quase todos os dirigentes khmers vermelhos estudaram na França, e a maioria aderiu ao PCF, inclusive o futuro Pol Pot. Um certo número das suas referências históricas provêm dessa formação: Suong Si­koeun, adjunto de Ieng Sary, garante: “Fui muito influenciado pela Revolução Francesa, e particu­lar­men­te por Robespierre. Daí, foi um passo para me tornar comunista. Robespierre é o meu herói. Robespierre e Pol Pot: os dois homens têm as mesmas qualidades de determinação e de integridade.” (págs. 744-745)
74.”Em 1979, 42% das crianças eram órfãs, três vezes mais de pai do que da mãe; 7% haviam perdido os dois progenitores. Em 1992, é entre os adolescentes que a situação de isolamento é mais dramática: 64% de órfãos. Uma parte dos males sociais gravíssimos que ainda hoje fazem enormes estragos na sociedade cam­  (...) provém desta desarticulação: criminalidade em massa e freqüentemente violenta (as armas de fogo são encontradas por todos os lados), corrupção generalizada, desrespeito e falta de solidariedade, ausência, em todos os níveis, do menor sentido do interesse geral. As centenas de milhares de refugiados no estrangeiro (150 mil só nos Estados Unidos) continuam, também eles, a sofrer o que viveram: pesadelos freqüentes, a mais alta taxa de depressões nervosas de todos os oriundos da Indochina, uma grande solidão para as mulheres que chegaram sozinhas, em número muito maior do que os homens da sua geração, assassinados.” (págs.756-757)






O terceiro mundo

Pascal Fontaine, Yves Santamaria e Sylvain Boulouque
A América Latina e a experiência comunista, Pascal Fontaine

Cuba. O interminável totalitarismo tropical

Nicarágua o fracasso de um projeto totalitário

Peru: a “longa marcha” sangrenta do Sendero Luminoso

Afrocomunismos: Etiópia, Angola, Moçambique, Yves Santamaria

O império vermelho: a Etiópia

Violências lusófonas: Angola, Moçambique

O comunismo no Afeganistão, Sylvain Boulouque

Resumo: Esta parte mistura um porção de “experiências socialistas”, de modo muito epidêrmico. O destaque vai para Cuba.. O sargento taquígrafo Fulgencio Batista, governou se apoiando também no Partido Comunista cubano. Fidel foi preso em 1953 e salvou a vida pela intervenção do arcebispo de Santago de Cuba, Mons. Perez Serantes. “A vitória fácil dos guerrilheiros (...) Na realidade a guerrilha só havia travado combates pouco significativos, e Batista foi vencido antes de mais nada, porque perdeu o controle de Havana em face do terrorismo urbano. O embargo americano de armas jogou igualmente em seu desfavor.” (pág. 770). Após a queda de Batista, formou-se um governo de coalizão. Fidel Castro ficou com a chefia do exército. Mas, logo, os “democratas” abandonara, o governo e o país teve a primeira oleada de fugas (50.000 pessoas aproximadamente).
75. “Em junho de 1959, cristalizava-se a oposição entre liberais e radicais acerca da reforma agrária lançada em 17 de maio. (...) Castro escolheu uma política mais radical, sob a égide do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), confiado a marxista ortodoxos e do qual ele foi o primeiro presidente. (...) Em junho de 1959, e para acelerar a reforma agrária, ordenou ao exército que tomasse o controle de cem latifúndios na província de Camagüey.” (pág. 771).
76.”Em maio de 1961, todos os colégios religiosos foram fechados, e os respectivos edifícios, confiscados, inclusive o colégio jesuíta de Belen, no qual Fidel fizera os seus estudos. Envergando o seu uniforme, o Líder Máximo declarou: “Que os padres falangistas se preparem para fazer as malas!” (...) em 17 de setembro de 1961, 131 padres diocesanos e religiosos foram expulsos de Cuba. Para sobreviver, a Igreja teve de votar-se para si mesma.” (pág. 773)
77.”Apelidado de “Gestapo Vermelha” pelos cubanos, o Departamento de Segurança do Estado (DSE) (...) detém o domínio sobre o sistema carcerário.
Inspirado no modelo soviético, o DSE foi dirigido desde o início por estrangeiros. O DSE sustenta a sobrevivência do sistema castrista utilizando para fins econômicos os milhares de detidos condenados a trabalhos forçados. (...) A Dirección Especial del Ministerio del Interior, ou DEM, recruta chivatos (informantes) aos milhares, a fim de controlar a população. A DEM trabalha segundo três eixos: o primeiro, chamado “informação”, consiste em estabelecer um processo sobre cada cubano; o segundo, “o estado da opinião”, sonda a opinião dos habitantes; o terceiro, designado por “linha ideológica”, tem por missão vigiar as igrejas e as congregações através da infiltração de agentes.
Desde 1967, o Minit dispõe das suas próprias tropas de intervenção: as Fuerzas Especiales. Em 1995, elas contavam 50 mil homens, Essas tropas de choque colaboram estreitamente com a Dirección 5 e com a Dirección de Seguridad Personal (serviço de proteção pessoal). Guarda pretoriana de Castro, (...)
A Dirección 5 é “especializada” na eliminação de opositores. (...) Elias de la Torriente foi abatido em Miami, e Aldo Vera, um dos chefes da guerrilha urbana contra Batista, foi assassinado em Porto Rico. No exílio em Miami, Hubert Matos é obrigado a fazer-se proteger por vários guardas armados. As detenções e os interrogatórios conduzidos pela Dirección 5 realizam-se no centro de detenção de Villa Marista, em Havana, um antigo edifício da congregação dos Irmãos Maristas. Ali, num universo fechado, ao abrigo dos olhares, num extremo isolamento para o detido, praticam-se torturas mais psíquicas do que físicas.” (pág. 777-778)
78.”É possível fazer um balanço da repressão dos anos 60: entre sete e dez mil pessoas foram fuziladas, e avaliava-se em 30 mil o número de detidos políticos. (...)
A Unidade Militar de Apoio à Produção (UMAP), que funcionou entre 1964 e 1967, foi o primeiro ensaio de desenvolvimento de trabalho penitenciário. Operacionais em novembro de 1965, os campos da UMAP eram verdadeiros campos de concentração, para onde eram desordenadamente atirados religiosos (católicos, entre os quais o atual arcebispo de Havana, Mons. Jaime Ortega, protestantes, testemunhas de Jeová), proxenetas, homossexuais e quaisquer indivíduos considerados “potencialmente perigosos para a sociedade”. (...) As “pessoas socialmente desviantes” eram submetidas a uma disciplina militar, que se transformou num regime de maus-tratos, de subalimentação e de isolamento. Para escapar a esse inferno, havia detidos que se auto-mutilavam. Outros saíram psiquicamente destruídos pelo encarceramento. (...) Os protestos internacionais provocaram o encerramento dos campos da UMAP após dois anos de existência.
Em 1964, foi implementado um programa de trabalho forçado na ilha dos Pinheiros: o plano “Camilo-Cienfuegos”. (...) os prisioneiros eram destinados aos trabalhos agrícolas ou à extração nas pedreiras, sobretudo de mármore. (...) os detidos trabalhavam quase nus vestindo um simples calção. À guisa de punição, os recalcitrantes eram obrigados a cortar erva com os dentes, e outros foram jogados dentro de fossas de excrementos durante várias horas.
A violência do regime penitenciário atingiu tanto os presos políticos quanto os de direito comum. (...) À tortura física juntava-se a tortura psíquica, freqüentemente com acompanhamento médico; os guardas utilizavam o pentotal e outras drogas, a fim de manter os presos acordados. No hospital de Mazzora, os eletrochoques eram usados com fins repressivos, sem qualquer restrição. Os guardas empregavam cães de guarda, procediam a simulações de execução; as 9 celas disciplinares não tinham água nem eletricidade; o detido que se pretendia despersonalizar era mantido em completo isolamento.
 (...) os familiares do detido pagam socialmente o empenhamento político do seu parente. Os filhos não têm acesso à universidade, e os cônjuges perdem o emprego.” (págs. 778-779)
79.”A prisão mais tristemente célebre foi, durante muito tempo, a de Cabaña, (...) A “especialidade” de Cabaña eram as masmorras de reduzidas dimensões chamadas ratoneras (buracos de rato). Ela foi desativada em 1985. Mas as execuções prosseguem em Columbio, em Boniato, prisão de alta segurança onde reina uma violência sem limites e onde dezenas de políticos são mortos de fome. Para não serem violentados pelos presos de direito comum, alguns se lambuzam com excrementos. Boniato continua a ser ainda hoje a prisão dos condenados à morte, sejam políticos ou de direito comum. É célebre pelas suas celas de rede de arame, as tapiadas. Por falta de assistência médica, dezenas de prisioneiros encontraram a morte nessas celas. (...)
Algumas prisões voltaram a pôr em vigor as jaulas de ferro. No fim dos anos 60, na prisão de Tres Macios del Oriente, as gavetas (celas), destinadas originalmente aos presos de direito comum, foram ocupadas pelos presos políticos. Tratava-se de uma cela de 1 metro de largura por 1,8 metro de altura, e com um comprimento de uma dezena de metros. Nesse universo fechado, em que a promiscuidade é dificilmente suportável, sem água nem higiene, os prisioneiros permaneciam semanas, às vezes vários meses. (...)
No universo carcerário de Cuba, a situação das mulheres é especialmente dramática, uma vez que elas são entregues sem defesa ao sadismo dos guardas.” (págs. 780-781)
80.”Situado próximo de Santiago de Las Vegas, o campo Arco-Iris está concebido para receber 1.500 adolescentes. Não é o único: existe também o de Nueva Vida, no sudeste da ilha. Na zona de Paios, situa-se o Capitiolo, campo de internamento especial reservado a crianças com cerca de 10 anos. Os adolescentes cortam cana ou fazem trabalhos de artesanato, tais como as crianças enviadas para estágio em Cuba pelo MPLA de Angola ou pelo regime etíope nos anos 80.” (pág. 782)
81.”Os condenados a penas leves de três a sete anos de prisão têm residência fixa em frentes ou em granjas. A granja é uma inovação castrista. É constituída por acampamentos confiados aos guardas do Ministério do Interior, os quais têm o direito de disparar sobre qualquer pessoa que tente fugir. Rodeada por várias redes de arame farpado e torres de vigia, assemelha-se ao campo de trabalho corretivo soviético. Algumas granjas podiam comportar de 500 a 700 prisioneiros. As condições de detenção são horríveis: trabalho de 12 a 15 horas por dia, com guardas que não hesitam em perfurar os detidos com as pontas das baionetas para acelerar o seu ritmo.
Quanto à “frente aberta”, trata-se de um canteiro de trabalho onde o prisioneiro tem residência fixa, sendo geralmente posto sob comando militar. (...) Os detidos nas granjas — políticos ou de direito comum — produzem elementos pré-fabricados para uso dos presos das frentes abertas. (...) Em 1974, o valor dos trabalhos realizados representava mais de 348 milhões de dólares. Todos os organismos do Estado recorrem aos prisioneiros.” (págs. 783-784)
82.”Os cubanos foram profundamente abalados pelo êxodo em massa do porto de Mariel, em 1980. Esse efei­to foi agravado pela ação dos CDRs, que organizaram atos de repudio destinados a marginalizar social­mente e a quebrar o moral dos opositores — doravante designados pelo nome de gusanos (vermes) — e das suas famílias. Agrupada diante da casa do opositor, uma multidão rancorosa bombardeia com pedras e injúrias os seus moradores. Slogans castristas e insultos são inscritos nas paredes. A polícia só intervém quando “a ação revolucionária de massas” se torna fisicamente perigosa para a vítima.
Essa prática de quase-linchamento alimenta no interior da população sentimentos de ódio recíproco numa ilha em que todos são conhecidos por todos. Os atos de repúdio quebram os laços entre vizinhos, alteram o tecido social para melhor impor o todo-poderoso Estado socialista. A vítima — vaiada aos gritos de “Afuera, gusano!” (“Fora, verme!”), “Agente de Ia CIA!” e, claro, “Viva Fidel!'' — não tem qualquer hipótese de defender-se na justiça. (...) Mais tarde, perante o cansaço dos cubanos em relação a essas orgias de ódio social, as autoridades começaram a utilizar pessoas provenientes de bairros diferentes dos das vítimas.” (pág. 785)
83.”Em 1961, os primeiros a deixar Cuba em grande quantidade foram os pescadores. O balsero, equivalente cubano do boat-people do Sudeste da Ásia, (...) Esse fenômeno (...) foi levado ao conhecimento do mundo inteiro com a crise de abril de 1980. Milhares de cubanos cercaram a embaixada do Peru em Havana, exigindo vistos de saída para fugir a um cotidiano insuportável. No fim de várias semanas, as autoridades permitiram que 125 mil pessoas — numa população que, na época, era de 10 milhões de habitantes — abandonassem o país embarcando no porto de Mariel. Castro aproveitou o ensejo para “libertar” os doentes mentais e os pequenos delinqüentes Esse êxodo em massa foi uma manifestação do fracasso do regime, pois os Marielitos, como foram chamados, eram oriundos das camadas mais humildes da sociedade, às quais o regime dizia dar uma grande atenção. Brancos, mulatos e negros, freqüentemente jovens, fugiam do socialismo cubano. Após o episódio de Mariel, numerosos cubanos inscreveram-se em listas para conseguir o direito de abandonar o seu país. Dezessete anos mais tarde, eles continuam à espera dessa autorização.
No decorrer do verão de 1994, (...) Castro autorizou novo êxodo de 25 mil pessoas. Posteriormente, as partidas não cessaram, e as bases americanas de Guantánamo e do Panamá estão saturadas de exi­la­dos voluntários. Castro tentou igualmente travar essas fugas em jangadas, enviando helicópteros para bom­bar­dear as frágeis embarcações com sacos de areia. Cerca de sete mil pessoas pereceram no mar durante o verão de 1994. Ao todo, estima-se que um terço dos balseros morreu durante a fuga. Em 30 anos, teriam sido entre 25 mil e 35 mil os cubanos que tentaram a fuga pelo mar. No total, os diversos êxo­dos fazem com que Cuba tenha atualmente 20% dos seus cidadãos no exílio. Numa população global de 11 milhões de habitantes, perto de 2 milhões de cubanos vivem fora da ilha. O exílio desarticulou as famí­lias, e são incontáveis as que estão dispersas entre Havana, Miami, Espanha ou Porto Rico...” (págs. 786-787)
84.”Em 1978, havia entre 15.000 e 20.000 prisioneiros de opinião. (...) Em 1986, estimava-se de 12.000 a 15.000 o número de prisioneiros políticos encarcerados em 50 prisões “regionais” distribuídas por toda a ilha. A isto juntam-se hoje múltiplas frentes abertas reforçadas por brigadas de 50, 100 e mesmo 200 prisioneiros. (...) na primavera de 1997, Cuba conheceu uma nova onda de prisões. (...)
Desde 1959, mais de cem mil cubanos conheceram os campos, as prisões ou as frentes abertas. Entre 15.000 e 17.000 pessoas foram fuziladas.” (pág. 788)
Resumo: O livro faz uma muito parca referência ao apoio de Fidel à revolução na África, e não diz nada sobre a promoção da subversão na América Latina e as vítimas ocasionadas. O capítulo referente a Nicarágua, noticia a história da Revolução sandinista, descreve rapidamente as tentativas de reforma agrária e os desordens causados. Por fim se detém algo na guerra civil contra os anti-sandinistas que teria deixado entre 45.000 e 50.000 mortos. A parte do Perú é brevíssima. Nada, mas absolutamente nada sobre os movimentos guerrilheiros mais célebres da América Latina, como os de Argentina, Uruguai ou Brasil. E, por sobre tudo brada pela ausência o comunismo chileno.
85. “Em 1971, na IV Conferência do Bandera Roja, uma outra cisão originou (...) o Sendero Luminoso. O nome foi tomado de empréstimo a José Carlos Mariatégui, que escrevera: “O marxismo-Lêninismo abrirá o trilho (sendero) luminoso da revolução”. Adulado pelos militantes, Guzman é chamado “a quarta espada do marxismo” (depois de Marx, Lênin e Mao). Vargas Llosa analisa desse modo o seu “projeto” revolucionário: “Para ele, o Peru descrito por José Carlos Mariatégui nos anos 20 é essencialmente semelhante à realidade chinesa analisada por Mao nessa época — uma 'sociedade semi-feudal e semi-colonial' —, e ele conseguirá a sua libertação através de uma estratégia semelhante à da Revolução Chinesa: uma guerra popular prolongada que, utilizando os campos como coluna vertebral, realizará o 'assalto' às cidades. [...] O modelo de socialismo que reivindica são a Rússia de Stalin, a Revolução Cultural do 'bando dos quatro' e o regime de Pol Pot no Camboja.” (pág. 801)
86.”Guzman poderia ter predito: “O triunfo da Revolução custará um milhão de mortos!” — o Peru contava então 19 milhões de habitantes. (...) Em janeiro de 1982, executaram dois professores diante dos respec­ti­vos alunos. Alguns meses mais tarde, 67 “traidores” foram abatidos publicamente no decorrer de um “jul­gamento popular”. No início, a execução de latifundiários e de outros proprietários de terras não chocara os camponeses, (...) em 1983, o Sendero começou a colaborar com os narcotraficantes em Huánuco.” (pág. 803)
“Segundo algumas fontes, o Sendero Luminoso é responsável pela morte de 25.000 a 30.000 pessoas. As crianças dos campos pagaram um pesado tributo ao terrorismo de guerra civil do Sendero: entre 1980 e 1991, os atentados mataram 1.000 crianças e mutilaram cerca de 31.000. 0 esfacelamento das famílias nas zonas de guerra também deixou cerca de 50.000 crianças entregues a si próprias, entre as quais numerosos órfãos.” (pág. 806)
Resumo: Seguem capítulos referentes à África. O responsável por esta parte sublinha a falta de densidade da casuística dado primitivismo das condições. A própria Rússia reconheceu a poucos movimentos como verdadeiramente comunistas. Entretanto, as desgraças que o comunismo provocou não diferem essencialmente: tentativas desastrosas de reforma agrária, conflitos civis logo transformados em guerras de caráter étnico, e descomposição da pouca estrutura econômica estabelecida durante o colonialismo ocidental. De toda África, o caso mais caracteristicamente comunista, é o da Etiópia, com a derrocada do imperador Haile Salassié e a implantação de uma ditadura de tipo soviético delirante. O coronel Mengistu Hailé Mariam (na realidade bastardo da aristocracia imperial) instaurou o comunismo com um golpe militar. Apelou para conselheiros cubanos e da Alemanha Oriental, nacionalizou os bancos, aboliu a propriedade das terras e só deixou um só imóvel por família para habitação. A riqueza agrícola foi liquidada. Milícias urbanas funcionavam como as secções da Comuna de Paris. A polícia expunha os cadáveres dos opositores nas ruas, onde eram alimento das hienas. Las províncias rebeldes foram bombardeadas, e, por fim, objeto de uma guerra total. O regime ordenou a transferência das populações insubmissas. 2,5 milhões teriam sofrido isso, com espantosa taxa de mortalidade nos campos de concentração. Uma campanha mundial atraiu dinheiro ocidental para socorrer as vítimas. Os recursos foram gastos pela ditadura marxista em armas e objetos suntuários.
De Angola e Moçambique, o responsável ressalta guerras civis, reformas agrárias e coletivização dos campos, participação de conselheiros soviéticos e cubanos, etc. O fanatismo marxista fazia com que os líderes falassem em nome da classe operária, quando na realidade essa não existe nesses países.
O capítulo sobre o Afeganistão é extenso. Detalha as revoluções, a intervenção russa, as brutalidades do Exército Vermelho contra a população, campos de concentração e de tortura, fugas em massa, estratégia de terra queimada, 700.000 civis, especialmente crianças, mutilados por minas anti-pessoais, 30.000 crianças seqüestradas e enviadas à URSS, etc.
87.”A amplitude do desastre é ainda hoje dificilmente mensurável. Numa população total de cerca de 16 milhões, mais de cinco milhões fugiram para o Paquistão e para o Irã, onde vivem em condições miseráveis. O número de mortos é muito difícil de se estabelecer: a guerra teria feito, conforme os testemunhos, entre um milhão e meio e dois milhões de vítimas, 90% das quais sendo civis. Teria havido entre dois e quatro milhões de feridos.” (pág. 860)



POR QUÊ?

Stéphane Courtois

88. “Fica, na verdade, a questão fundamental do “Por quê?”. Por que foi que o comunismo moderno, surgido em 1917, se transformou quase imediatamente numa ditadura sangrenta e depois num regime cri­mi­no­so? Os seus objetivos só podiam ser atingidos através da violência mais extrema? (...) A URSS de Lênin e de Stalin foi a matriz do comunismo moderno. O fato de essa matriz ter adquirido, repentinamente, uma dimensão criminosa é ainda mais surpreendente, se considerarmos que esse fato a situa na contramão da evolução do movimento socialista.” (pág. 864)
89. “Ao longo de todo o século XIX, a reflexão sobre a violência revolucionária foi dominada pela experiência fundadora da Revolução Francesa, a qual conheceu, em 1793-1794, um episódio de violência intensa que adotou três formas principais. A mais selvagem surgiu com as “matanças de setembro”, durante as quais mais de mil pessoas foram assassinadas em Paris por amotinados, sem que tivesse havido qualquer intervenção governamental ou de qualquer partido. A mais conhecida baseava-se na instituição do Tribunal Revolucionário, dos Comitês de Vigilância (de delação) e da guilhotina, que enviaram para a morte 2.625 pessoas em Paris e 16.600 em toda a França. Oculto durante muito tempo, o terror praticado pelas “colunas infernais” da República tinha por missão liquidar a Vendéia, fazendo dezenas de milhares de mortos entre uma população desarmada. No entanto, esses meses de terror não foram mais do que um episódio sangrento, que se inscreve como um momento numa trajetória de mais longa duração, simbolizada pela criação de uma república democrática, com a sua Constituição, a sua Assembléia e os seus debates políticos. Quando a Convenção se afirmou, Robespierre foi derrubado, e o Terror acabou.
François Furet (...) : “O Terror é o governo do medo, que Robespierre teoriza como governo da virtude. Criado com a finalidade de exterminar a aristocracia, o Terror torna-se um meio de submeter os malvados e combater o crime. É, por isso mesmo, um aliado da Revolução, inseparável dessa porque só ele permite a construção futura de uma República de cidadãos. [...] Se não é ainda possível a existência de uma República de cidadãos livres, é porque os homens, pervertidos pela história passada, são maus; através do Terror, a Revolução, essa história inédita, inteiramente nova, criará um homem novo.”
Sob certos aspectos, o Terror prefigurava a atitude dos bolcheviques (...) Robespierre colocou in­con­­tes­tavelmente a primeira pedra no caminho que mais tarde havia de conduzir Lênin ao terror. Pois foi ele próprio quem afirmou, na Convenção, durante a votação das leis do Prairial: “Para punir os inimigos da Pátria, é suficiente saber a sua identidade. Não se trata de castigá-los, mas de destruí-los.” (págs. 863-864)
90. “Embora ligados à tradição européia do marxismo, os bolcheviques mergulhavam também as suas raízes no terreno do movimento revolucionário russo. Ao longo do século XIX, esse último manteve uma estreita afinidade com uma violência minoritária, cuja primeira expressão radical se deve ao famoso Serguei Netchaiev, (...) Em 1869, Netchaiev redigiu um Catecismo do Revolucionário, onde se definia: “Um revolu­cio­nário é um homem antecipadamente perdido; não tem interesses particulares, negócios privados, sentimentos, ligações pessoais, bens, e nem sequer um nome. Tudo nele é totalmente absorvido por um único interesse que exclui todos os outros, por um único pensamento, por uma paixão — a revolução. No seu íntimo, não apenas por palavras, mas também por atos, rompeu todos os laços com a ordem pública, com todo o mundo civilizado, com todas as leis, conveniências, convenções sociais e regras morais do mundo em que vive. O revolucionário é um inimigo implacável desse mundo e só continuará a viver para mais seguramente o destruir.”
Em seguida, Netchaiev especificava os seus objetivos: “O revolucionário não se integra no mundo po­lí­tico e social, no mundo dito culto, e só vive ali com a esperança da sua mais completa e rápida destrui­ção. Nunca será um revolucionário, se mostrar compaixão, seja pelo que for, nesse mundo.” E, imediatamente, visiona a ação: “Toda essa sociedade imunda deve ser dividida em várias categorias. A primeira compreende os condenados à morte imediata. [...] A segunda categoria deverá abranger os indivíduos aos quais a vida é concedida provisoriamente, a fim de que, através dos seus atos monstruosos, incitem o povo à insurreição inelutável.” (...)
O ódio de Lênin por esse regime [czarista] estava profundamente enraizado, e foi aliás Lênin pessoalmente quem, à revelia dos membros do Politburo, decidiu e organizou o assassinato da família imperial dos Romanov, em 1918.
Na opinião de Martin Malia, esse (...) “regresso imaginário à Revolução Francesa, marcou a chegada à cena mundial do terrorismo como tática política sistematizada (muito diferente do terrorismo do atentado solitário). E foi assim que a estratégia populista de insurreição vinda das bases (das massas), conjugada com o terror vindo de cima (das elites que as guiavam), conduziu a Rússia a uma legitimação da violência política que ultrapassava a legitimação inicial dos movimentos revolucionários da Europa Ocidental, de 1789 a 1871”. (págs. 866-867)
91. “Em nome da verdade da mensagem, os bolcheviques passaram da violência simbólica para a violência real, e instalaram um poder absoluto e arbitrário, a que chamaram “ditadura do proletariado”, retomando uma expressão que Marx havia utilizado, por acaso, numa carta.” (págs. 867-877)
92. “Contrariamente ao Terror da Revolução Francesa, que, com exceção da Vendéia, só atingiu uma pequena faixa da população, o terror de Lênin visava todas as formações políticas e todas as camadas da população: nobres, grandes burgueses, militares, policiais, mas também democratas-constitucionais mencheviques, socialistas-revolucionários, e até o povo em geral, camponeses e operários.” (pág. 873)
93. “Trotski (...) : “É perfeitamente evidente que, se definirmos como objetivo a abolição da propriedade privada individual dos meios de produção, não haverá outra maneira de consegui-lo senão através da concentração de todos os poderes do Estado nas mãos do proletariado, a criação de um regime de exceção durante um período transitório. [...] A ditadura é indispensável (...) nenhum acordo é possível; só a força pode decidir. Quem quer atingir um fim não pode repudiar os meios.” (pág. 875)
94. “Apanhado entre o desejo de aplicar a sua doutrina e a necessidade de conservar o poder, Lênin imaginou o mito da revolução bolchevique mundial. Em novembro de 1917, ele quis acreditar que o incêndio revolucionário iria devastar todos os países implicados na guerra, e sobretudo a Alemanha. Ora, não houve qualquer revolução mundial e, após a derrota alemã, em novembro de 1918, instalou-se uma nova Europa, pouco preocupada com as faíscas revolucionárias rapidamente extintas na Hungria, na Baviera e até em Berlim. (...) Mais do que nunca, o terror esteve na ordem do dia, o que permitia conservar o poder, começar a remodelar a sociedade à imagem da teoria e impor silêncio a todos aqueles que, pelos seus discursos, pela sua prática ou somente pela sua existência — social, política, intelectual — denunciavam todos os dias a vacuidade da teoria. A utopia no poder torna-se uma utopia mortífera.
Essa dupla defasagem entre a teoria marxista e a teoria Lêninista, e depois entre a teoria Lêninista e a realidade, deu origem ao primeiro debate fundamental sobre o significado da revolução russa e bolchevique. Em agosto de 1918, Kautsky pronunciou uma sentença sem apelo: “Em caso algum é permitido supor que na Europa Ocidental se repetirão os acontecimentos da grande Revolução Francesa. Se a Rússia atual apresenta tanta similitude com a França de 1793, isso é a prova de que se encontra próxima da fase da Revolução Francesa. [...] O que lá se passa não é a primeira revolução socialista, mas sim a última revolução burguesa.”“ (pág. 875)
95. “É a elevação da ideologia e da política à condição de Verdade absoluta, porque “científica”, que fundamenta a dimensão “totalitária” do comunismo. É ela que comanda o partido único. É ainda ela que justifica o Terror.” (pág. 876)
96. “Kautsky (...) : 'Na verdade, o nosso objetivo último não é o socialismo, mas sim abolir 'todas as formas de exploração e de opressão, quer sejam dirigidas contra uma classe, um partido, um sexo ou uma raça'. [...] Se conseguissem demonstrar-nos que estamos errados não acreditando que a libertação do proleta­ria­do e da humanidade em geral pode tornar-se uma realidade unicamente, ou mais comodamente, com base na propriedade privada dos meios de produção, deveríamos então lançar o socialismo janela afora, sem com isso renunciarmos ao nosso objetivo final, e nesse caso deveríamos até fazê-lo precisamente no interesse desse mesmo objetivo final.'“ (pág. 887)
97. “Em 1919, Trotski (...) concluía: “A revolução violenta tornou-se uma necessidade na exata medida em que as exigências imediatas da História não podem ser satisfeitas pelo aparelho da democracia par­la­men­tar.” (...) Doze anos mais tarde (...) Aragon disse-o em verso: 'Os olhos azuis da Revolução brilham com uma crueldade necessária'.” (págs. 886-887)
98. “Gorki levará até as últimas conseqüências essa posição, promovendo a criação do Instituto de Medicina Experimental da URSS. No início de 1933, escreveu: “Está muito breve o tempo em que a ciência vai perguntar aos seres ditos normais: querem que todas as doenças, as incapacidades, as imperfeições, a senilidade e a morte prematura do organismo sejam minuciosa e aprofundadamente estudadas? Esse estudo não pode ser feito com experiências em cães, em coelhos, em cobaias. A experimentação com o próprio homem é indispensável; é imprescindível estudar nele próprio o funcionamento do seu organismo, os processos de alimentação intra-celular, a hematopoese, a química dos neurônios e, mais geralmente, todos os processos orgânicos. Para isso, serão necessárias centenas de unidades humanas para prestar um verdadeiro serviço à humanidade, o que será com toda a certeza mais importante e mais útil do que o extermínio de dezenas de milhões de seres saudáveis para conforto de uma classe miserável, física e moralmente degenerada, de predadores e de parasitas.” (...)
Ora, existe no comunismo um eugenismo sócio-político, um darwinismo social. (...) A partir do momento em que se decreta, em nome de uma ciência — ideológica e político-histórica como o marxismo-Lêninismo —, que a burguesia representa uma etapa ultrapassada da evolução da humanidade, justifica-se a sua liquidação enquanto classe e, logo a seguir, a liquidação dos indivíduos que a constituem ou que são supostos de pertencer-lhe.” (págs. 888-890)
99. “Considera-se até freqüentemente que existe uma diferença radical entre o nazismo e o comunismo ba­sea­da no fato de o projeto nazista ser particularizante — estritamente nacionalista e racial —, enquanto o projeto Lêninista é universalista. Nada mais falso: na teoria e na prática, Lênin e os seus seguidores ex­cluí­ram claramente da humanidade o capitalismo, a burguesia, os contra-revolucionários, etc. (...) fizeram deles inimigos absolutos.” (pág. 891)
100. “O conjunto dos processos de terror que acabamos de invocar foi, é certo, iniciado na URSS por Lênin e Stalin, mas contém um determinado número de elementos invariáveis que se encontram, com diferentes graus de intensidade, em todos os regimes que se reclamam do marxismo-Lêninismo. Cada país ou partido comunista teve a sua história específica, as suas características, locais e regionais, os seus casos mais ou menos patológicos, mas esses inscreveram-se sempre na matriz elaborada em Moscou em novembro de 1917 e que, por esse fato, impôs uma espécie de código genético.” (pág. 892)
101. “Os “Lyssenko” megalômanos não teriam já tentado criar, além de outras espécies de milho ou de tomate, uma nova espécie de homem?
Essa mentalidade cientificista do fim do século XIX, contemporânea do triunfo da medicina, inspirou Vassili Grossman a fazer essa observação sobre os chefes bolcheviques: “Os homens dessa têmpera comportam-se como os cirurgiões numa clínica. (...) O bisturi é o grande teórico, o líder filosófico do século XX.” A idéia é levada ao extremo no caso de Pol Pot, que, com um terrível golpe de bisturi, amputa a parte “gangrenada” do corpo social — “o povo novo” e conserva a parte “sã” — “o povo antigo”. (...) Já em 1870, Piotr Tkatchev, revolucionário russo e digno êmulo de Netchaiev, propôs o extermínio de todos os russos com mais de 25 anos, considerados incapazes de conceber a idéia revolucionária.” (pág. 892)
102. “Gorki, no seu texto de homenagem a Lênin, em 1924: “Lênin (...) uma vez, porém, disse-me, enquanto acariciava umas crianças: 'A vida deles será melhor do que a nossa; muito do que nós sofremos lhes será poupado. A sua vi a será menos cruel'. Com o olhar perdido na lonjura, acrescentou, sonhador: 'Mesmo assim, não os invejo. A nossa geração concretizou uma tarefa espantosa pela sua importância histórica. A crueldade da nossa vida, imposta pelas circunstâncias, será compreendida e perdoada. Tudo será compreendido, tudo!”
Sim, tudo começa agora a ser compreendido, mas não no sentido em que o entendia Vladimir Ilitch Ulianov. Que resta hoje dessa “tarefa espantosa pela sua importância histórica”? Não uma ilusória “construção do socialismo”, mas uma imensa tragédia que continua a pesar sobre a vida de centenas de milhões de pessoas e que irá marcar a entrada no terceiro milênio.” (pág. 895)


FIM


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