Stéphane Courtois, Nicolas Werth, Jean-Louis Panné, Andrzej Paczkowski, Karel Bartosek, Jean-Louis Margolin, “O livro negro do comunismo. Crimes, terror e repressão”, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1999, 917 págs. (título original: “Le livre noir du communisme. Crimes, terreur, repression”, Robert Laffont, Paris, 1997).
O livro negro do comunismo
Stéphane Courtois e Jean-Louis Panné
1. O Komintern em ação. “Assim que subiu ao
poder, Lênin sonhou propagar o incêndio revolucionário pela Europa e depois por
todo o mundo. Inicialmente, esse sonho respondia ao famoso slogan do Manifesto
do Partido Comunista, de Marx, em 1848: “Proletários de todos países, uni-vos!”
À primeira vista, correspondia também a uma necessidade imperiosa: a
revolução bolchevique não poderia se manter no poder nem se desenvolver, se não
estivesse protegida, apoiada e seguida por outras revoluções em países mais
desenvolvidos. (...) Essa necessidade conjuntural transformou-se rapidamente
em um verdadeiro projeto político: a revolução mundial. (...) a revolução
pareceu surgir espontaneamente no rastro da derrota alemã e austro-húngara.”
(pág. 322)
2. “No início de janeiro de 1919, os spartakistas,
chefiados por Karl Liebknecht (...) tentaram uma insurreição em Berlim, sendo
esmagados pelos militares sob as ordens do governo social-democrata. (...) O
mesmo aconteceu na Baviera, onde, em 13 de abril de 1919, um responsável do
KPD, Eugen Levine, tomou a frente de uma República de Conselhos, nacionalizou
os bancos e começou a formar um exército vermelho. Essa Comuna de Munique foi
esmagada militarmente em 30 de abril (...)
O exemplo mais célebre desse impulso
revolucionário foi o da Hungria. (...) Tratou-se do primeiro caso em que os
bolcheviques puderam exportar sua revolução. (...) Essa República durou 133
dias, de 21 de março a 1º de agosto de 1919. Logo na primeira reunião, os
comissários decidiram criar tribunais revolucionários, presididos por
juízes escolhidos entre o povo. (...) Lênin, a quem Béla Kun havia saudado como
o chefe do proletariado mundial, aconselhava o fuzilamento dos social-democratas
e dos “pequeno-burgueses”; em sua mensagem aos operários húngaros, em 27 de
maio de 1919, ele assim justificava o recurso ao terror: “Essa ditadura (do
proletariado) implica o exercício de uma violência implacável, rápida e
determinada, destinada a esmagar a resistência dos exploradores, dos
capitalistas, dos grandes proprietários rurais e seus partidários. Aquele
que não compreendeu isto não é um revolucionário”. (...) Uma proclamação
afixada em todas as paredes resumia o estado de espírito do momento: “Em um
Estado proletário, só os que trabalham têm o direito a viver!” Trabalhar
tornou-se obrigatório, as empresas com mais de 20 operários foram expropriadas,
seguindo-se as de dez e até mesmo aquelas com menos de dez empregados. O
exército e a polícia foram desmantelados, constituindo-se um novo exército
formado por voluntários seguros do ponto de vista revolucionário. Pouco
depois, seguiu-se a criação de uma “Tropa do Terror do Conselho Revolucionário
do Governo”, também conhecida como os “Rapazes de Lênin”. (...) obedeciam às
ordens de um antigo marinheiro, Jozsef Czerny, que recrutava seus servidores
entre os comunistas mais radicais, sobretudo prisioneiros de guerra que
tinham participado da Revolução Russa”. (págs. 323-324).
3. “As últimas semanas da Comuna de Budapeste
foram caóticas. Béla Kun teve de enfrentar uma tentativa de golpe (...) No dia
1º de agosto de 1919, ele deixou Budapeste sob a proteção de uma missão militar
italiana; no verão de 1920 ele refugiou-se na URSS, onde, recém-chegado, foi
nomeado comissário político do Exército Vermelho, no fronte sul,
notabilizando-se então por ter ordenado a execução dos oficiais de Wrangel, que
se renderam ante a promessa de serem poupados.” (págs. 324-325)
4. “Komintern e guerra civil. (...) Lênin tomou a
iniciativa de criar uma organização internacional suscetível de levar a
revolução ao mundo inteiro. A Internacional Comunista — também denominada
Komintern, ou ainda Terceira Internacional — foi fundada (...) durante a
realização de seu II Congresso, no verão de 1920, com a adoção de 21
condições de admissão, às quais os socialistas que desejassem aderir deveriam
submeter-se, integrando assim uma organização extremamente centralizada — ”o
estado-maior da revolução mundial” (...)
O manifesto adotado no II Congresso anunciava
orgulhosamente: “A Internacional Comunista é o partido internacional da
insurreição e da ditadura do proletariado”. Como conseqüência, a terceira das
21 condições decretava: “Em quase todos os países da Europa e da América, a
luta armada entra num período de guerra civil. Nessas condições, os comunistas
não podem confiar na legalidade burguesa. É seu dever criar em todos os
lugares, paralelamente à organização legal, um organismo clandestino
capaz de, nos momentos decisivos, cumprir com o seu dever para com a revolução”.
Fórmulas eufemísticas: o “momento decisivo” era a insurreição revolucionária,
e o “dever para com a revolução” era a obrigação de se engajar na guerra civil.
(...)
A 13ª condição considerava o caso dos militantes
que não fossem “unânimes”: o Partido Comunista [...] deve proceder à depuração
periódica das suas organizações, a fim de afastar os elementos interesseiros e
pequeno-burgueses”.
Durante o III Congresso, reunido em Moscou
em junho de 1921, com a participação de vários partidos comunistas já
constituídos, as orientações foram ainda mais precisas. A “Tese sobre a tática”
indicava: “O Partido Comunista deve inculcar nas mais vastas camadas do
proletariado, através da ação e da palavra, a idéia de que todo conflito
econômico ou político pode, em uma conjuntura favorável, transformar-se em
guerra civil, durante a qual a tarefa do proletariado será a de tomar o poder
político”. E as “Teses sobre a Estrutura, os Métodos, e a Ação dos Partidos
Comunista” discorriam longamente sobre as questões da “sublevação
revolucionária aberta” e da “organização de combate” que cada partido comunista
deveria criar secretamente no interior de sua organização; as teses
especificavam que esse trabalho preparatório era indispensável, uma vez que “não
seria esse o momento adequado para a formação de um Exército Vermelho regular”.
(págs. 326-327)
5. “a vez de a República da Estônia (...) dia 27 de
outubro de 1917, um Conselho de Sovietes havia tomado o poder em Tallin,
dissolvendo a Assembléia e anulando as eleições desfavoráveis aos comunistas.
Diante da ameaça do corpo expedicionário alemão, os comunistas bateram em
retirada. (...) A ocupação alemã durou até novembro de 1918. (...) os
comunistas retomaram bem depressa a iniciativa: em 18 de novembro, foi
constituído um governo em Petrogrado, e duas divisões do Exército Vermelho
invadiram a Estônia. (...) o avanço das tropas soviéticas, que já se encontravam
a apenas 30 quilômetros da capital, foi detido por um contra-ataque estoniano.
A segunda ofensiva redundou igualmente em fracasso. (...) Nas localidades já
ocupadas, os bolcheviques passaram à pratica de chacinas: em 14 de janeiro de
1920, em Tartu, na véspera de sua retirada, eles assassinaram 250 pessoas, e
mais de mil no distrito de Rakvere. Logo após a libertação de Wesenberg, em 17
de janeiro, foram abertas três valas comuns (86 cadáveres). Em Dorpad, os
reféns fuzilados em 26 de dezembro de 1919 haviam sido torturados: braços e
pernas extirpados, e, às vezes, olhos perfurados. Em 14 de janeiro, antes da
fuga, os bolcheviques só tiveram tempo de executar 20 pessoas, entre as quais o
arcebispo Platon, das 200 que estavam sendo mantidas como prisioneiras. Mortas
com golpes de machado e coronhadas — um oficial foi encontrado com as dragonas
do uniforme cravadas em seu corpo com pregos! —, as vítimas eram
dificilmente identificáveis.” (págs. 328-329)
Resumo: os fracassos foram a regra: Albânia, Bulgária,
e até na China onde Chiang Kai-shek, líder do partido nacionalista Kuomintang,
“se beneficiava de uma importante ajuda material da parte dos soviéticos” (pág.
331).
6. “Todos os partidos comunistas, incluindo os
legais e os pertencentes a repúblicas democráticas, mantiveram em seu
interior a existência de um “aparelho militar” secreto, capaz de vir a público
quando fosse a ocasião.” (pág. 333)
7. “Na França, onde o clima político era mais
calmo, o Partido Comunista Francês (PCF) também criou seus quadros armados ...
(pág.334)
8. “Em 1931, o Komintern publica, em várias
línguas, um livro intitulado L'Insurrection Armée, assinando com o
pseudônimo Neuberg — tratava-se, na realidade, de responsáveis
soviéticos —, que abordava as diferentes experiências insurrecionais a
partir de 1920. (...) Por mais surpreendente que possa parecer, alguns jovens
quadros de confiança do Partido Comunista Francês ainda continuavam, no
começo dos anos 70, um treinamento na URSS (tiro, montagem e desmontagem de
armas, fabricação de armas artesanais, transmissões, técnicas de sabotagem) com
as Spetsnaz, as tropas soviéticas especiais postas à disposição dos serviços
secretos. Inversamente, o GRU dispunha de especialistas militares que poderiam
ser emprestados aos partidos-irmãos em caso de necessidade. Manfred Stern, por
exemplo, o austro-húngaro que, colocado no “M-Apparat” do KPD para a
insurreição de Hamburgo de 1923, operou posteriormente na China e na Manchúria,
antes de tornar-se o “general Kleber'' da Brigadas Internacionais na Espanha.
Esses aparelhos militares clandestinos não eram
propriamente formados por “meninos de coro”. Os seus membros estavam por vezes
no limite do banditismo, e alguns desses grupos transformaram-se em verdadeiros
bandos.
Simultaneamente, em fins de 1923, (...) houve um
reforço da sua obediência ao centro moscovita. (...) As reações da direção do
PCF mostram claramente qual era o estado de espírito exigido a partir de então
nas fileiras do Partido Mundial: “No nosso Partido [o PCF], que a luta
revolucionária não expurgou totalmente do velho fundo social-democrata, a
influência das personalidades desempenha ainda um papel demasiado importante.
[...] Será somente a partir da destruição de todas as sobrevivências
pequeno-burguesas do 'Eu' individualista que se formará a anônima falange de
ferro dos bolcheviques franceses. [...] Se ele quer ser digno da Internacional
Comunista à qual ele pertence, se ele quer seguir os passos gloriosos do
Partido russo, o Partido Comunista Francês deve romper, sem hesitação, com
todos aqueles que, em seu interior, se recusarem a submeter-se a sua lei!”
(L'Humanité, 19 de julho de 1924.) O redator anônimo ignorava que ele acabara
de enunciar a lei que regeria a vida do PCF durante décadas. O sindicalista
Pierre Monatte resumiu essa evolução em uma palavra: a “militarização” do PC.”
(págs. 340-341)
Resumo: a “bolchevização” do Komintern deu numa “raiva
paranoica, num zelo frenético de mostrar-se como o mais vigilante dos
comunistas” (pág. 348). Os membros da Komintern denunciavam-se uns aos outros.
O mesmo faziam os membros do PCs ante a Komintern. Os relatórios acumulavam-se
às centenas. Os próprios chefes da Komintern não foram poupados pelos expurgos
internos. O Komintern perdeu a maior parte dos seus membros no terror. O
estrago foi generalizado em todos os órgãos que trabalhavam para a exportação
da Revolução. Por fim, Stalin assinou acordos com Hitler. Como mostra de
sinceridade entregou judeus e militantes comunistas à Gestapo.
9. “A guerra, a interdição do PCF, que defendia a
aproximação germano-soviética, e a ocupação alemã levaram o Partido a reforçar
as suas tendências policiais. Foram denunciados os militantes que haviam se
recusado a apoiar a aliança Hitler-Stalin, incluindo os que se juntaram à
resistência, (...) Jules Fourrier, que a “polícia do Partido” tentou, sem
sucesso, liquidar; (...) a partir do fim de 1940, participou da criação de uma
rede de resistência; foi deportado para Buchenwald e mais tarde para
Mauthausen. (...)
Em plena caça aos judeus, o PC usava de
estranhos métodos para denunciar os seus “inimigos”: “C... Renée, dita Tania,
ou dita Thérèse, do XIV bairro de Paris, judia da Bessarábia”, “De B... judeu
estrangeiro. Renegado, difama o PC e a URSS”. A mão-de-obra de imigrantes
(MOI), organização que reunia os militantes comunistas estrangeiros, recorreu a
uma linguagem não menos característica: “R. Judeu (não é o seu verdadeiro
nome). Trabalha com um grupo judeu inimigo. (...) É bastante provável que, durante
as prisões, a polícia de Vichy ou a Gestapo conseguiu pôr as mãos nessas
listas. O que aconteceu às pessoas então denunciadas?” (págs. 346-347)
10. “No dia 31 de dezembro de 1939, fomos acordados
às seis da manhã (...). Um judeu comunista húngaro, chamado Bloch, que havia
fugido para a Alemanha após o insucesso da Comuna de 1919, vivia ali com
documentos falsos, continuando a sua militância em favor do Partido. Mais
tarde, utilizando-se dos mesmos documentos falsos, ele havia emigrado. (...)
ele também foi entregue à Gestapo alemã. (...) Durante a noite de 31 de
dezembro de 1939 para 1º de janeiro de 1940, o trem pôs-se em marcha (...) até
Brest-Litovsk. Na ponte do rio Bug, estávamos sendo esperados pelo aparelho do
outro regime totalitário da Europa, a Gestapo alemã.” [testemunho de Alexandre
Weissberg, L'Accusé, Fasquelle, 1953.)
“Três pessoas se recusaram a atravessar essa
ponte, a saber: um judeu húngaro chamado Bloch, um operário comunista condenado
pelos nazistas e um professor alemão de cujo nome não consigo me lembrar. Eles
foram levados à força para a ponte. A raiva dos nazistas, dos SS, abateu-se
imediatamente sobre o judeu. (...) Verificamos então que não somente o NKVD nos
entregara à Gestapo, como haviam sido entregues os documentos que nos diziam
respeito.” [Margarete Buber-Neumann, “Deposição no Processo Kravehenko contra Les
Lettres Françaises, 14ª audiência, 23 de fevereiro de 1949. Resumo
estenografado.]” (pág. 357).
11. Louis Aragon, Prelúdio ao Tempo das Cerejas
Eu canto a GPU que se forma
na França agora mesmo
Eu canto a GPU necessária da França
Eu exijo uma GPU para preparar o fim de um mundo
(...)
Viva a GPU verdadeira imagem da grandeza
materialista
Viva a GPU contra o papa e os piolhos
Viva a GPU contra as manobras do Leste
Viva a GPU contra a família
VIVA A GPU. (1931)
[Citado por Jean Malaquais, Le nommé Louis
Aragon ou le patriote proffesionnel suplemento a Masses, fevereiro
de 1947.] (págs. 362-363)
12. “Anti-fascistas e revolucionários
estrangeiros vítimas do terror na URSS. (...) em meados dos anos 30, vivia
na Rússia um grande número de estrangeiros que, mesmo sem ser comunistas,
haviam sido atraídos pela miragem soviética. Muitos deles pagaram com a
liberdade, e por vezes com a vida, o preço dessa paixão pelo país dos sovietes.
No início dos anos 30, os soviéticos conduziram
uma campanha de propaganda sobre a Carélia, (...) Quase 12 mil pessoas deixaram
a Finlândia, acrescidos de cerca de cinco mil finlandeses vindos dos Estados
Unidos (...) os agentes da Amtorg (agência comercial soviética) lhes prometiam
trabalho, bons salários, alojamento e viagem gratuita de Nova York a Lêningrado.
Recomendava-se aos interessados que levassem tudo o que possuíssem. A “corrida
para a utopia” (...) transformou-se em pesadelo. Desde a sua chegada, as
máquinas, as ferramentas e as economias desses imigrantes foram confiscadas.
Obrigados a entregar os passaportes, eles se viram como prisioneiros em uma
região subdesenvolvida, onde predominava a floresta, em condições de
subsistência particularmente duras. (...) pelo menos 20 mil finlandeses foram
encarcerados em campos de concentração. (...)
os armênios (...) Respondendo à convocação de
Stalin, (...) em setembro de 1947, vários milhares deles se reuniram no porto
de Marselha. Três mil e quinhentos embarcaram no Rossia, que os transportou
para a URSS. Assim que o navio transpôs a linha imaginária que demarcava as
águas territoriais soviéticas no Mar Negro, a atitude das autoridades
soviéticas mudou repentinamente. Muitos então compreenderam a armadilha odiosa
em que tinham caído. Em 1948, duas centenas de armênios chegaram dos Estados
Unidos. Acolhidos em clima de festa, eles tiveram a mesma sorte: os seus
passaportes foram confiscados logo na chegada. (...)
Na URSS, em meados dos anos 30, viviam cerca de
600 comunistas e simpatizantes italianos: perto de 250 quadros políticos
emigrantes e 350 alunos que freqüentavam cursos nas três escolas de formação
política. Como muitos desses alunos deixaram a URSS após o término de seus
estudos e uma centena de militantes partiram para lutar na Espanha, em 1936 e
1937, o Grande Terror abateu-se sobre os que ficaram. Cerca de 200 italianos
foram presos, geralmente “por espionagem”; 40 foram fuzilados — dos quais
25 foram identificados; os restantes foram enviados ao Gulag, tanto para as
minas de ouro de Kolyma quanto para o Cazaquistão.” (págs. 368-370)
13. “Diante do avanço do exército alemão, vários
judeus poloneses haviam fugido para o leste. Durante o inverno de 1939-1940, os
alemães não tentaram interditar a passagem pela nova fronteira. Mas os que tentavam
a sua sorte tinham de enfrentar um obstáculo inesperado: “Os guardiões
soviéticos do 'mito de classe', envergando longos sobretudos e barretes de
peles, de baioneta erguida, recebiam os nômades que procuravam a Terra
Prometida com cães policiais e rajadas de metralhadora.” De dezembro de 1939 a
março de 1940, os judeus permaneceram encurralados numa terra de ninguém, de um
quilômetro e meio de largura, na margem oriental do rio Bug, obrigados a
acampar a céu aberto. A maioria regressou à zona alemã.
Em março de 1940, várias centenas de milhares de
refugiados — há quem avance o número de 600 mil — viram lhes ser
imposto um passaporte soviético. Os acordos sovieto-nazistas previam uma troca
de refugiados. Com as famílias separadas, a penúria e o terror policial
exercido pelo NKVD se agravando a cada dia, alguns decidiram regressar ao lado
alemão da antiga Polônia. Jules Margoline, que se encontrava em Lvov, na
Ucrânia Ocidental, relata que na primavera de 1940 os “judeus preferiam o gueto
alemão à igualdade Soviética”.
No começo de 1940, as deportações começaram a
atingir os cidadãos poloneses (...) o trem em que viajava Jules Margoline levou
dez dias para chegar a Murmansk. Excelente observador da sociedade dos campos
de concentração, Margoline escreveu: “O que distingue os campos soviéticos de
todos os outros locais de detenção existentes no mundo não são apenas as suas
extensões imensas, inimagináveis, nem as suas mortíferas condições de vida. É a
necessidade de mentir incessantemente para salvar a vida, mentir sempre, usar
uma máscara durante anos e nunca poder dizer o que se pensa. Na Rússia
soviética, os cidadãos 'livres' são igualmente obrigados a mentir. [...] Assim,
os únicos meios de autodefesa são a dissimulação e a mentira. Os comícios, as
reuniões, os encontros, as conversas, os jornais em murais são envolvidos por
uma fraseologia oficial que não contém uma só palavra verdadeira. O homem do
Ocidente muito dificilmente compreenderá o que significa a privação do direito
e a impossibilidade, durante cinco ou dez anos, de se exprimir livremente, a
obrigação de reprimir o menor pensamento 'ilegal' e de ficar mudo como um
túmulo. Sob essa incrível pressão, toda a substância interior de um indivíduo
se deforma e desagrega.”
No inverno de 1945-1946, o Dr. Jacques Pat,
secretário do Comitê Operário Judeu dos Estados Unidos, foi à Polônia com a
missão de concluir um inquérito sobre os crimes nazistas. (...) Segundo ele,
400.000 judeus poloneses teriam morrido deportados, nos campos ou em colônias
de trabalhos forçados. No fim da guerra, 150.000 escolheram reaver a
nacionalidade polonesa, para fugirem da URSS.” (págs. 375-377)
14. “O regresso forçado à URSS dos prisioneiros
soviéticos. (...) ser prisioneiro durante quatro anos fora do território
nacional fazia de um militar russo detido pelos alemães um traidor merecedor de
castigo; o Decreto nº 270, de 1942, que alterava o Código Penal, parágrafo 193,
declarava que um prisioneiro capturado pelo inimigo era ipso facto um traidor.
Pouco importavam as condições em que a captura se dera e o modo como o
cativeiro havia decorrido (...)
Stalin (...) decidiu pedir o repatriamento de
todos os russos que se encontrassem na zona ocidental. Não houve qualquer
problema na satisfação desse pedido. Desde o fim de outubro de 1944 até janeiro
de 1945, mais de 332.000 prisioneiros (dos quais 1.179 de São Francisco) foram
repatriados, contra a sua vontade, para a União Soviética. Os diplomatas
britânicos e americanos não só não tinham quaisquer problemas de consciência
relativamente a essa atitude, como falavam a respeito dela com uma certa dose
de cinismo, pois não ignoravam, como Mr. Antony Eden, que seria preciso o uso
da força para “resolver” a questão.
Por ocasião das negociações de Yalta (5 a 12 de
fevereiro de 1945), os três protagonistas (soviéticos, ingleses e americanos)
concluíram acordos secretos que incluíam tanto os soldados como os civis deslocados.
Churchill e Eden aceitaram que Stalin decidisse a sorte dos prisioneiros que
haviam combatido nas fileiras do Exército Russo de Libertação (ROA), comandados
pelo general Vlassov, como se esses homens pudessem se beneficiar de um
julgamento minimamente justo. (...)
Assinados os acordos de Yalta, não foi preciso
uma semana para que vários comboios partissem em direção à URSS. Em dois meses,
de maio a julho de 1945, foram “repatriados” mais de 1.300.000 indivíduos que
se encontravam nas zonas ocidentais de ocupação e que Moscou considerava
soviéticos (estavam incluídos os bálticos, anexados em 1940, e os ucranianos).
No final de agosto, mais de dois milhões desses “russos” haviam sido “devolvidos”.
Por vezes em condições atrozes: os suicídios individuais ou coletivos (famílias
inteiras) e as mutilações tomaram-se freqüentes; no momento de serem entregues
às autoridades soviéticas, os prisioneiros tentaram inutilmente opor uma
resistência passiva, e os anglo-americanos não hesitaram em recorrer à força
para satisfazer as exigências soviéticas. Logo durante a chegada, os
repatriados ficavam sob o controle da polícia política. No próprio dia em que o
Almanzora chegou a Odessa, em 18 de abril, houve várias execuções
sumárias. O mesmo aconteceu quando o Empire Pride aportou no Mar Negro.
(págs. 378-379)
15. “Essa política perfeitamente consciente dos
ocidentais não teve sequer como conseqüência a facilitação do regresso dos seus
próprios cidadãos. Pelo contrário, permitiu à URSS enviar um sem-número de
funcionários em busca de recalcitrantes e agir à margem das leis das nações
aliadas.
Quanto aos franceses, o Bulletin do governo
militar da Alemanha afirmava que, no dia 1º de outubro de 1945, 101.000 “pessoas
deslocadas” haviam sido reenviadas para o setor soviético. Na própria França,
as autoridades aceitaram a criação de 70 campos de reunião que muitas vezes se
beneficiavam de uma estranha extra-territorialidade, como o de Beauregard, um
subúrbio parisiense, sobre o qual renunciaram a exercer qualquer tipo de
controle, deixando que os agentes soviéticos do NKVD operassem na França com
uma impunidade lesiva à soberania nacional. O planejamento dessas operações
fora cuidadosamente amadurecido pelos soviéticos (...) O campo de Beauregard só
viria a ser fechado em novembro de 1947 pela Direção de Segurança do Território,
como conseqüência do rapto de crianças disputadas entre pais divorciados. Roger
Wybot, que dirigiu a operação, observou: “Na realidade, com os elementos que
pude obter, esse campo de trânsito mais parecia um campo de seqüestro.” (págs.
379-380)
16. “Os inimigos prisioneiros. A URSS não
ratificara as Convenções Internacionais sobre os prisioneiros de guerra
(Genebra, 1929). Em teoria, os prisioneiros estavam protegidos pela convenção,
mesmo no caso de o seu país não a ter assinado. Na URSS, essa disposição não
tinha qualquer valor. Vitoriosa, ela conservava de três a quatro milhões de
prisioneiros alemães. Entre eles, contavam-se soldados libertados pelas potências
ocidentais que, uma vez regressados à zona soviética, haviam sido deportados
para a URSS.
Em março de 1947, Viatcheslav Molotov declarou
que um milhão de alemães (exatamente 1.003.974) haviam sido repatriados,
restando ainda 890.532 nos campos do seu país. Esses números foram contestados.
Em março de 1950, a URSS declarou que o repatriamento dos prisioneiros estava
concluído. No entanto, as organizações humanitárias advertiram que pelo menos
300.000 prisioneiros tinham ficado retidos na URSS, bem como 100.000 civis.
(...) Uma estimativa feita por uma comissão especial (a Comissão Maschke) revelou
que um milhão de soldados alemães presos na URSS morreram nos campos. Assim,
dos 100.000 prisioneiros feitos pelo Exército Vermelho em Stalingrado, só
sobreviveram cerca de 6.000.
Do lado alemão, em fevereiro de 1947 estavam
vivos cerca de 60.000 soldados italianos (...). O governo italiano informou
que apenas 12.513 desses prisioneiros haviam regressado à Itália até aquela
data. É preciso igualmente assinalar que os prisioneiros romenos e húngaros que
tinham combatido na frente russa conheceram situações análogas. Em março de
1954, foram libertados cem voluntários da divisão espanhola “Azul”. Essa visão
geral não ficaria completa se não citássemos os 900.000 soldados japoneses
aprisionados na Manchúria, em 1945.” (págs. 380-381)
17. “As crianças gregas e o Minotauro soviético.
Durante a guerra civil de 1946-1948, os comunistas gregos efetuaram, nas
zonas que controlavam, um recenseamento de todas as crianças, de ambos os
sexos, dos três aos 14 anos. Em março de 1948, essas crianças foram reunidas
nas regiões fronteiriças e levadas aos milhares para a Albânia, para a
Iugoslávia e para a Bulgária. (...) Com muita dificuldade, a Cruz Vermelha
arrolou 28.296 crianças seqüestradas. No verão de 1948, consumada a ruptura
entre Tito e o Komintern, uma parte das crianças (11.600) retidas na
Iugoslávia foi (...) transferida para a Tchecoslováquia, para a Hungria, para
a Romênia e para a Polônia. No dia 17 de novembro de 1948, a Terceira
Assembléia da ONU tomou a resolução de condenar o rapto das crianças gregas.
(...) Todas as decisões seguintes tomadas pela ONU ficaram, como as
anteriores, sem resposta: os regimes comunistas vizinhos se obstinavam em
fazer crer que essas crianças tinham melhores condições de vida entre eles do
que na própria Grécia; chegaram mesmo a querer dar a entender que a deportação
tinha sido um gesto humanitário.
Entretanto, o exílio forçado dessas crianças
continuou, em tais condições de miséria, de subalimentação e de epidemias,
que muitas morreram. Reunidas em “povoados para crianças”, elas eram obrigadas
a participar de cursos de politização, além da escolaridade normal. A partir
dos 13 anos, tinham de executar trabalhos pesados, como, por exemplo, o
desbravamento das regiões pantanosas de Hartchag, na Hungria. O que estava por
trás dessa jogada comunista era a formação de uma nova geração de militantes
totalmente devotados. (...) Entre 1950 e 1952, apenas 684 crianças regressaram
à Grécia. Em 1963, cera de quatro mil crianças (algumas nascidas em países
comunistas) tinham sido repatriadas.” (págs. 390-391)
Stéphane Courtois e Jean-Louis Panné
Resumo: no governo da Frente
Popular, “o embaixador soviético Marcel Israelevich Rosenberg (...) impôs-se
como uma espécie de vice-primeiro-ministro, com participação ativa no Conselho
de Ministros; ele era detentor de um triunfo considerável, uma vez que a URSS
estava disposta a fornecer armas aos republicanos” (pág. 395). O objetivo era
levar o PCE ao poder, instaurar os métodos soviéticos e “a onipresença do
sistema policial e a liquidação de todas as forças não comunistas” (pág. 396).
Inicialmente, Stalin não deu importância à Guerra da Espanha, criando perplexidade
entre os seus assistentes mais próximos. Por fim, a Rússia concentrou o envio
de agentes na Catalhunha, donde funcionava camuflada uma dependência do
NKVD. “a URSS não concedia crédito aos republicanos, sendo que as armas tinham
de ser pagas antecipadamente à custa das reservas de ouro do Banco da Espanha,
que os seus agentes conseguiam transferir clandestinamente para a URSS; cada
entrega de armas era uma oportunidade de chantagem explorada pelos comunistas”
(pág. 401)
Os agentes russos livraram uma verdadeira guerra no seio das forças da
esquerda, com chekas, expurgos, torturas, terror, assassinatos, etc. Nos
arquivos de Moscou encontram-se dezenas de milhares de informes sobre a ortodoxia
dos membros da Brigadas internacionais, entretanto criadas por Moscou e
formando um exército comunista.
18. “Durante a guerra civil, foram enviadas para a
URSS milhares de crianças espanholas com idades compreendidas entre os 5 e
os 12 anos. (...) Em 1939, os professores espanhóis foram acusados de “trotskismo”
e, segundo El Campesino, 60% deles foram detidos e aprisionados na Lubianka,
sendo os restantes enviados para uma fábrica. Uma jovem professora foi
torturada durante 20 meses antes de ser fuzilada. As crianças conheceram então
uma sorte pouco invejável, (...) em 1941, segundo Jesus Hernández, 50% haviam
contraído tuberculose, e 750 (ou seja, 15%) morreram antes do êxodo verificado
nesse mesmo ano. Nos Urais e na Sibéria Central, especialmente em Kokand, os
adolescentes descontrolaram-se. Formaram bandos que se dedicavam ao roubo, e
as moças se prostituíam. Alguns cometeram suicídio. Ainda segundo Jesús
Hernández, morreram 2.000 crianças, dum total de 5.000. (...) feitas as contas,
apenas 1.500 voltaram a casa.
(...) 218 jovens aviadores que chegaram em
1938 para um estágio de formação de seis a sete meses em Kirovabad. No fim de
1939, o coronel Martínez Carton, membro do Bureau Político do PCE e agente do
NKVD, impôs-lhes uma escolha: ficar na URSS ou partir para o estrangeiro. Os
que preferiram deixar a URSS foram de imediato enviados para fábricas. Em 19 de
setembro de 1939, foram todos presos e foi instaurado um processo contra eles.
Alguns foram torturados, outros executados na Lubianka, e a maior parte
condenada a dez ou 15 anos de campo. Do grupo enviado para Petchoraliev, não
restou um único sobrevivente. Em resumo, dos 218 aviadores, só uma meia dúzia
sobreviveu”. (págs. 415-416)
Andrzej Paczkowski e Karel Bartosek
Resumo: esta parte é
genérica. Apenas fornece dados sobre alguns dos países ocupados após o fim da
II Guerra Mundial. O primeiro país analisado é a Polônia, da qual fornece
basicamente os mesmos dados da parte sobre a Rússia.
19. “Extrato de Tríptico Kazaque: Memórias de
Deportação (Varsóvia, 1992)
Lucyna Dziurzynska-Suchon: “Lembro-me de um dos
momentos mais dramáticos da nossa vida. Durante vários dias não tínhamos
comido nada, literalmente nada. Era inverno. A cabana estava toda coberta de
neve. Apenas podíamos sair graças a um túnel escavado por alguém do exterior
[...]. Mamãe pôde ir trabalhar. Tinha tanta fome quanto nós. Ficávamos deitados
numa cama miserável, encostados uns aos outros para termos um pouco de calor.
Pequenas luzes cintilavam em nossos olhos. Já não tínhamos forças para nos
levantarmos. O frio era intenso, mesmo lá dentro [...]. Passávamos o tempo
adormecidos. O meu irmão acordava de tempos a tempos e gritava: 'Tenho fome'
e 'Mamãe, estou morrendo'. Ele não conseguia dizer mais nada. A nossa mãe
chorava. Foi pedir ajuda nas cabanas vizinhas, aos nossos amigos. Sem
resultado. Começamos a rezar... 'Pai Nosso...' E talvez tenha acontecido um
milagre. Uma amiga, vizinha, apareceu com uma mão cheia de farinha de trigo...”
(págs. 438-439)
20. “O NKVD contra a Armia Krajowa (Exército
Nacional). Na noite de 4 para 5 de janeiro de 1944, os primeiros tanques
do Exército Vermelho cruzaram a fronteira entre a Polônia e a URSS,
estabelecida em 1921. A resistência polonesa previa que, à medida que o AK
(Exército Nacional) se aproximasse da frente, mobilizaria a população,
desencadearia o combate contra os alemães e, após a chegada do Exército
Vermelho, viria ao seu encontro como autoridade legítima. A operação recebeu o
nome de código “Burza” (“Tempestade”). Os primeiros combates foram travados
no fim de março de 1944, em Volhynie, onde o comandante da divisão do AK lutou
lado a lado com as unidades soviéticas. Porém, em 27 de maio, algumas das
unidades do AK foram forçadas pelo Exército Vermelho a depor suas armas, o que
obrigou o grosso dos efetivos da divisão a recuar em direção à Polônia, ao
mesmo tempo que combatia os alemães.
Esta atuação dos soviéticos — primeiro
cooperação a nível local, seguida de desarmamento forçado dos poloneses está
confirmada também em outros casos. Os acontecimentos mais espetaculares
ocorreram na região de Vilnius. Alguns dias depois do fim dos combates,
chegaram contingentes das Unidades Internas do NKVD e (conforme a Ordem nº
220-145 emitida pelo Comando-Geral) conduziram uma operação de desarmamento dos
soldados do AK. Segundo relatório recebido por Stalin, em 20 de julho, mais de
6.000 resistentes foram presos, enquanto cerca de 1.000 conseguiram fugir. O
estado-maior dessas unidades de resistência polonesas foi preso. Os oficiais
foram encarcerados em campos do NKVD, que ofereceu aos soldados a escolha entre
o aprisionamento ou a integração ao exército polonês constituído sob a égide
dos soviéticos e comandado pelo general Zygmunt Berling. As unidades do AK que
participaram na libertação de Lvov tiveram o mesmo destino.
Em 1º de agosto de 1944 os comandantes do AK
desencadearam a insurreição em Varsóvia, cuja tomada fora planejada pelo
Exército Vermelho (frente da Bielo-Rússia) para 8 de agosto. Stalin deu ordem
para que a ofensiva fosse suspensa, já com o Vístula transposto ao sul de
Varsóvia, e deixou os alemães aniquilarem os revoltosos, que resistiram até 2
de outubro.
A oeste da linha de Curzon, onde o AK mobilizara
entre 30.000 e 40.000 soldados e libertara numerosas pequenas localidades, as
unidades do NKVD e do SMERSCH (a contra-espionagem militar) e unidades de
filtragem procederam de forma idêntica, obedecendo à Ordem nº 220169, de 1º de
agosto de 1944, oriunda do comando supremo das operações militares. Segundo
relatório datado de outubro e que resume a execução da diretiva, cerca de
25.000 militares do AK, entre eles 300 oficiais, foram desarmados, presos e
depois encarcerados.
(...) Os oficiais e soldados que se recusaram a
combater no exército de Berling foram enviados, como os seus camaradas de
Vilnius e Lvov, para os confins do Gulag. O número exato dos participantes na
operação “Burza”, que foram aprisionados pelos soviéticos, continua até hoje
desconhecido. As estimativas variam entre 25.000 e 30.000 soldados.” (págs.
440-442)
21. “As populações civis começaram por sofrer “expurgos
nacionais” que se revestiram nesta região de um caráter específico com a
chegada do Exército Vermelho, o “punho armado” do regime comunista. Comissários
políticos e serviços especiais desse exército — o SMERSCH e o NKVD —
empenharam-se a fundo numa depuração, sobretudo nos Estados que haviam enviado
tropas para a frente de guerra contra a União Soviética — Hungria, Romênia
e Eslováquia. Centenas de milhares de pessoas foram deportadas, dessa vez para
o Gulag soviético (os números exatos encontram-se ainda em fase de avaliação).
Segundo estudos recentes (...) teriam sido
deportadas centenas de milhares de pessoas, soldados e civis, entre os quais
crianças de 13 anos e velhos de 80: cerca de 40.000 da Ucrânia subcarpática,
pertencente à Tchecoslováquia, ocupada pela Hungria depois dos acordos de
Munique em 1938 e anexada de fato pela União Soviética em 1944. Na Hungria
— com cerca de nove milhões de habitantes —, teriam sido deportadas
nessa época mais de 600.000 pessoas, apesar de as estatísticas soviéticas
mencionarem apenas 526.604. Esse número foi estabelecido após a chegada aos
campos e não considerava os mortos nos campos de trânsito (...)
Apenas uma parte das depurações era gerida pelos
tribunais, “populares” e “de exceção”; no fim da guerra e nos primeiros meses
do pós-guerra, dominou uma perseguição extrajudiciária, com um grau de
violência — execuções, assassinatos, torturas e tomada de reféns —
permitido pela ausência ou pelo desrespeito da lei e das convenções
internacionais sobre prisioneiros de guerra e populações civis. O caso da
Bulgária, naquele momento com sete milhões de habitantes, é exemplar. Logo após
o dia 9 de setembro de 1944, data da tomada do poder pela Frente Patriótica e
da entrada do Exército Vermelho no país, entraram em funcionamento a milícia
popular e a Segurança de Estado, controladas pelos comunistas. Em 6 de outubro,
um decreto instituiu “tribunais populares”. Em março de 1945, esses tribunais
já haviam pronunciado 10.897 veredictos em 131 processos e condenado à morte
2.138 pessoas, entre as quais os regentes (um deles o irmão do rei
Boris III), a maior parte dos membros do Parlamento e dos governos do
período pós-1941, oficiais superiores, policiais, juízes, industriais e
jornalistas. No entanto, segundo vários especialistas, foi a “depuração
selvagem” a responsável pela maior parte das vítimas: entre 30.000 e 40.000
pessoas, na sua maioria personalidades locais, presidentes de câmara,
professores, popes e comerciantes. Em 1989, graças a testemunhas que já não tinham
medo de falar, começaram a ser descobertas valas comuns, repletas de cadáveres,
cuja existência era até então desconhecida.” (págs. 464-465).
22. “Raramente, no decorrer da história, a
instalação de um novo poder foi precedida por um banho de sangue como na
Iugoslávia (cerca de um milhão de vítimas para um país com uma população de
15,5 milhões de habitantes); múltiplas guerras civis, étnicas, ideológicas e
religiosas fizeram então mais mortos do que a guerra — eficaz e apreciada
pelos Aliados — contra os ocupantes ou contra a repressão exercida por
eles, cuja principal vítima foi, em determinadas regiões, a própria população
civil: na sua maioria mulheres, crianças e idosos. Essa guerra, verdadeiramente
fratricida e com alguns aspectos de genocídio — guerra em que um irmão
combateu o próprio irmão —, desembocou numa “depuração” tal que, na
ocasião da Libertação, quase não restavam no interior do país rivais políticos
dos comunistas ou do seu chefe Tito quem, diga-se de passagem, dedicou-se a sua
rápida eliminação. Evolução idêntica verificou-se na vizinha Albânia, aliás,
com a ajuda dos comunistas iugoslavos.” (pág. 468)
23. “A aplicação do modelo bolchevique foi mais
difícil em certos países do que em outros que conheciam a tradição da Igreja
Ortodoxa, a tradição bizantina do césaro-papismo, tendendo para a colaboração
da Igreja com o poder estabelecido (...) No caso da Igreja Católica, a sua
organização internacional, dirigida a partir do Vaticano, representava um
fenômeno insuportável para o “campo socialista” emergente. A confrontação entre
as duas grandes Internacionais da fé, com as suas duas capitais, Moscou e Roma,
era, portanto e logicamente, fatal. A estratégia de Moscou estava bem-definida:
romper os laços existentes entre as Igrejas Católica ou Greco-Católica e o
Vaticano, submetendo-as ao poder e transformando-as em Igrejas “nacionais”. É o
que deixam entender as consultas com os responsáveis soviéticos quando da
reunião do Bureau de Informação dos Partidos Comunistas, em junho de 1948,
relatada por Rudolf Slansky, secretário-geral do PCT.
Para atingir o seu objetivo — a redução da
influência das Igrejas sobre a vida social, submetê-las ao controle meticuloso
do Estado e transformá-las em instrumento da sua política —, os comunistas
combinaram repressão, tentativas de corrupção e... limpeza da hierarquia; a
abertura de arquivos permitiu desmascarar, por exemplo, na Tchecoslováquia,
numerosos eclesiásticos, principalmente bispos, como colaboradores da polícia
secreta. Terão alguns querido, com isso, evitar “o pior”?
A primeira onda de repressão anti-religiosa
(...) verifica-se provavelmente na Albânia. O primaz Gaspar Thaci, arcebispo de
Shkodêr, morreu em residência vigiada quando se encontrava nas mãos da polícia
secreta. Vincent Prendushi, arcebispo de Durrês, condenado a 30 anos de
trabalhos forçados, morreu em fevereiro de 1949, provavelmente em conseqüência
de tortura. Em fevereiro de 1948, cinco religiosos, entre eles os bispos Volai
e Ghini, o superior da delegação apostólica, foram condenados à morte e
fuzilados. Mais de cem religiosos e religiosas, padres e seminaristas morreram
na prisão ou foram levados diante de pelotões de fuzilamento. Como conseqüência
dessa perseguição, pelo menos um muçulmano, o jurista Mustafa Pipa, foi
executado: ele havia tomado a defesa de franciscanos. (...) em 1967, Henver
Hoxha declarava que a Albânia se tornara o primeiro Estado ateu do mundo. A
gazeta Nendorí anunciava com orgulho que todas as mesquitas e igrejas do país haviam
sido demolidas ou se encontravam fechadas ao culto 2.169 no total, das quais
327 eram santuários católicos.
Na Hungria a confrontação violenta entre a
Igreja Católica e o poder iniciou-se no decorrer do verão de 1948, com a “nacionalização”
das várias escolas confessionais. Cinco padres foram condenados em julho; as
condenações continuaram durante o outono. O indomável primaz da Hungria,
cardeal Jozsef Mindszenty, foi preso em 26 de dezembro de 1948, segundo dia das
festas do Natal, e condenado a prisão perpétua em 5 de fevereiro de 1949. Com a
assistência de seus “cúmplices”, ele teria fomentado uma conspiração contra a
República”, seguido da prática de espionagem, etc. — tudo isso, bem
entendido, a favor das “potências imperialistas” e em primeiro lugar dos
Estados Unidos. Um ano mais tarde o poder ocupava grande parte dos conventos,
expulsando a maior parte dos 12 mil religiosos e religiosas que neles viviam.
Em junho de 1951 o decano do episcopado e colaborador mais próximo do cardeal
Mindszenty, Monsenhor Grosz, arcebispo de Kalocza, conhecia destino idêntico ao
do seu primaz. As Igrejas Calvinista e Luterana, nitidamente com menos força,
contaram também várias vítimas, bispos e pastores, entre eles uma eminente
personalidade calvinista, o bispo Laszlo Ravasz.
Na Tchecoslováquia, como acontecera na Hungria,
o poder tudo fez para criar no interior da Igreja Católica uma corrente de
dissidência disposta à colaboração. Como os resultados obtidos foram apenas
parciais, passou-se depois a um grau superior de repressão. Em junho de 1949,
Josef Beran, arcebispo de Praga, encarcerado pelos nazistas desde 1942 nos
campos de Terezin e de Dachau, foi colocado sob residência vigiada e depois
aprisionado. Em setembro de 1949, foram presos algumas dezenas de vigários que
protestavam contra a lei sobre as Igrejas. Em 31 de março de 1950, abria-se em
Praga o processo de altos dignitários das ordens religiosas, acusados de
espionagem a favor do Vaticano e de outras potências estrangeiras, de
organização de depósitos clandestinos de armas e de preparação de um golpe de
Estado. O redentorista Mastilak, reitor do Instituto Teológico, foi condenado a
prisão perpétua. Os outros acumularam entre si 132 anos de cadeia. Na noite de
13 para 14 de abril do mesmo ano, verificava-se uma intervenção de grande
envergadura contra os conventos, preparada pelo Ministério do Interior como uma
operação militar. A maior parte dos religiosos foi deslocada e aprisionada.
Simultaneamente, a polícia colocou os bispos sob residência vigiada, de tal
modo que todo o contato com o mundo exterior era impossível.
Na primavera de 1950, o regime ordenou na
Eslováquia Oriental a liquidação da Igreja Greco-Católica (Uniata) através da
sua integração forçada na Igreja Ortodoxa — processo utilizado em 1946 na
Ucrânia Soviética. Os eclesiásticos que se opuseram foram aprisionados ou
afastados das suas paróquias. O arcipreste da Rutênia Soviética, Jozsef Csati,
foi deportado, depois de um processo fictício, para o campo de Vorkuta, na
Sibéria, onde permaneceu de 1950 até 1956.
A repressão das Igrejas foi concebida e
supervisada pelas cúpulas do PCT. A sua direção aprovava, em setembro de 1950,
a concepção política de uma série de processos contra católicos a terem início
em Praga, em 27 de novembro de 1950. Nove personalidades do círculo de
colaboradores mais próximos dos bispos — à frente das quais figurava
Stanislav Zela, vigário-geral de Olomuc, na Morávia Central — foram
condenadas a pesadas sentenças. Em 15 de janeiro de 1951, dessa vez em Bratislava,
capital eslovaca, terminava o processo de três bispos, entre eles o da Igreja
Greco-Católica. Os acusados nesses dois “processos dirigidos contra os agentes
do Vaticano na Tchecoslováquià' (frase comum na época) foram condenados a
sentenças entre os dez anos e a prisão perpétua. Essa série terminou no mês de
fevereiro de 1951, com novos processos, alguns incidindo de novo sobre os
círculos próximos dos bispos; mas a repressão não pararia aqui. Stepan Trochta,
bispo de Litomerice (Boémia Central), resistente preso em maio de 1942 e detido
até o fim da guerra nos campos de concentração de Terezin, Mauthausen e Dachau,
foi condenado a 25 anos de prisão... em julho de 1954.
(...) A elite da intelligentsia católica foi
duramente atingida pelos dois processos de 1952. (...) Nos países balcânicos, a repressão
contra as Igrejas seguiu o mesmo roteiro. Na Romênia, a liquidação da Igreja
Greco-Católica (Uniata), a segunda mais importante em número de fiéis depois da
Ortodoxa, acentuou-se durante o outono de 1948. A Igreja Ortodoxa assistiu,
muda, aos acontecimentos, uma vez que, em geral, a sua hierarquia apoiava o
regime (o que não impediu o fechamento de várias igrejas e a prisão de alguns
popes). Em outubro, encontravam-se já presos todos os bispos uniatas. A Igreja
Greco-Católica foi oficialmente proibida em 1º de dezembro de 1948. Contava,
naquele momento, com 1.573.000 fiéis (numa população de 15 milhões de
habitantes), 2.498 edifícios de culto e 1.733 padres. As autoridades
confiscaram os seus bens, fecharam as suas catedrais e igrejas, chegando ao
ponto de incendiar as suas bibliotecas; foram presos 1.400 padres (em torno de
600 em novembro de 1948) e cerca de 5.000 fiéis, dos quais 200, em média, foram
assassinados nas prisões.
A Igreja Católica Romana — 1.250.000 fiéis —
sofreu os primeiros ataques em maio de 1948, com a prisão de 92 padres. As
autoridades fecharam as escolas católicas e confiscaram as instituições médicas
e de caridade. Em junho de 1949, vários bispos da Igreja Romana foram presos;
no mês seguinte, as ordens monásticas foram proibidas. A repressão culminou em
setembro de 1951, com a organização de um grande processo político no tribunal
militar de Bucareste: numerosos bispos e leigos foram condenados como “espiões”.
Um dos bispos greco-católicos, ordenado
secretamente, preso durante 15 anos e que mais tarde trabalhou como operário,
testemunha: “Durante longos anos, suportamos em nome de São Pedro a tortura, os
espancamentos, a fome, o frio, o confisco de todos os nossos bens, o escárnio e
o desprezo. Beijávamos as algemas, as cadeias e as grades de ferro das nossas
celas como se fossem objetos de culto, sagrados; e a nossa farda de
prisioneiros era o nosso hábito de religiosos. Nós havíamos escolhido carregar
a cruz, apesar de nos proporem sem cessar uma vida fácil em troca da renúncia a
Roma. Os nossos bispos, padres e fiéis foram condenados, no total, a mais de 15
mil anos de detenção e cumpriram mais de mil. Seis bispos amargaram na prisão
por fidelidade a Roma. Hoje, apesar de todas as vítimas, a nossa Igreja possui
o mesmo número de bispos que na época em que Stalin e o patriarca ortodoxo
Justiniano, com todo o triunfo, a declararam morta.” (Frantisek Miklosko (Vocês
não conseguirão destruí-los, Bratislava, archa, 1991, pp. 272-3) (págs.
482-486)
24. “a doutrina bolchevique exigia a liquidação da
propriedade privada e o desenraizamento, para sempre, do seu proprietário.
(...) A partir de 1945, os novos regimes começaram as nacionalizações
(estatizações) das grandes empresas, operação muitas vezes legitimada pela
expropriação necessária dos bens dos “alemães, traidores e colaboracionistas”.
Assegurado o monopólio do poder, chegou a vez dos pequenos proprietários,
comerciantes e artesãos. Os proprietários de oficinas e de modestas lojas que
nunca haviam explorado quem quer que fosse, exceto eles próprios ou os seus
familiares, tinham amplas razões de descontentamento. O mesmo acontecia com os
camponeses, ameaçados desde 1949-1950 pela coletivização forçada das suas
terras, imposta sob pressão dos dirigentes soviéticos. Em situação idêntica se
encontravam os operários (sobretudo nos centros industriais), atingidos por
diferentes medidas que afetavam o seu nível de vida ou liquidavam as conquistas
sociais do passado.
(...) A perseguição foi conscienciosamente
utilizada pelos dirigentes comunistas para mergulhar a sociedade no que Karel
Kaplan classifica como “psicologia do medo” e que era concebida por eles como “fator
de estabilização” do regime.” (págs. 487-488)
25. “O mar de sofrimento era imenso, e os rios
caudalosos que o alimentavam não cessavam de correr. Depois da eliminação dos
representantes dos partidos políticos e da sociedade civil, chegou a vez da “gente
do povo'. Nas fábricas, “perturbadores da ordem” foram tratados como “grandes
sabotadores” e atingidos pela “justiça de classe”. Essa justiça voltou-se
também contra todos os que, nos povoados, tinham o privilégio de uma autoridade
natural em virtude de um saber e de uma experiência acumulados ao longo de
décadas, e que se opunham a uma coletivização forçada de suas terras inspirada
no modelo da “melhor agricultura do mundo”. Milhões de pessoas compreenderam
então que as promessas que muitas vezes os haviam levado a se filiarem à
política comunista não passavam de mentiras táticas. (pág. 489)
26. “Começa agora a ser possível conhecer o número
exato de prisões e de campos de concentração. Já o número de pessoas que os
povoaram é bem mais difícil de ser determinado. Na Albânia, o mapa estabelecido
por Odile Daniel indica a localização de 19 campos e prisões. Na Bulgária,
o mapa do “Gulag búlgaro”, estabelecido depois de 1990, localiza 86 campos, e
cerca de 187.000 pessoas foram recenseadas pela associação dos antigos presos
políticos para o período de 1944-1962. (...)
Na Hungria, (...) segundo diferentes
estimativas, 700.000 a 860.000 pessoas teriam sido condenadas. Na maior parte
dos casos, tratava-se de delitos “contra a propriedade do Estado”. (...)
Na Romênia, a avaliação do número de presos
durante o regime comunista varia entre 300.000 e 1.000.000; o segundo número
inclui provavelmente não apenas os presos políticos como também os de direito
comum (sempre lembrando que a distinção entre esses dois tipos se revela por
vezes bastante complicada, sobretudo nos casos de “parasitismo”). No que se
refere aos campos de concentração, o historiador inglês Dennis Deletant avaliou
em 180.000 o número de pessoas presas nos campos romenos no início dos anos 50.
Na Tchecoslováquia, o número de presos políticos nos anos 1948-1954 está hoje
estabelecido em 200.000 pessoas. Para uma população de 12,6 milhões de
habitantes, funcionaram 422 campos e prisões.” (págs. 492-493)
27. “a Romênia (...) foi provavelmente o primeiro
país a introduzir no continente europeu os métodos de “reeducação” através da
“lavagem cerebral”, utilizados pelos comunistas asiáticos (...) O objetivo
demoníaco era levar os detidos a torturarem-se uns aos outros. Essa invenção
desenvolveu-se em Pitesti, uma prisão relativamente moderna, construída durante
os anos 30, a cerca de 110 quilômetros de Bucareste. A experiência começou em
dezembro de 1949 e durou cerca de três anos. (...) Eugen Turcanu, um
prisioneiro com um passado fascista (...) tornou-se o chefe de um movimento chamado
Organização dos Detidos com Convicções Comunistas (ODCC). O objetivo era a
reeducação dos presos políticos, combinando o estudo de textos doutrinários
comunistas com tortura física e moral. O núcleo re-educativo era constituído
por 15 detidos escolhidos, com a missão de primeiro estabelecerem contatos e
depois recolherem as confidências dos outros presos. Segundo o relato do
filósofo Virgil Ierunca, a reeducação comportava quatro fases.
A primeira chamava-se o “desmascaramento externo”:
o preso devia dar provas da sua lealdade, confessando o que ele havia escondido
na ocasião do inquérito do seu processo, sobretudo as suas ligações com amigos
que continuavam em liberdade. No decorrer da segunda fase, a do “desmascaramento
interno” ele devia denunciar os que o tinham ajudado no interior da prisão. Na
terceira fase, a do “desmascaramento, moral público”, era exigida a negação de
tudo o que para ele era importante ou mesmo sagrado — os pais, a mulher, a
noiva, os amigos e Deus, caso se tratasse de alguém religioso. Chegava depois a
quarta fase: o candidato a membro da ODCC devia “reeducar” o seu melhor amigo,
torturando-o pessoalmente e tornando-se ele próprio um carrasco.” (pág. 494)
28. “O inferno de Pitesti. (...) Em Pitesti
(...) foi praticada toda gama possível e impossível — de suplícios. O
corpo era queimado com cigarros; partes do corpo de alguns prisioneiros
começavam a gangrenar, caíam como as dos leprosos; outros eram obrigados a
ingerir excrementos e, se os vomitavam, o vômito era-lhes enfiado pela garganta
abaixo.
A imaginação delirante de Turcanu se excitava
sobretudo com os estudantes religiosos, que se recusavam a renegar Deus.
Alguns eram “batizados” todas as manhãs da seguinte maneira: enfiavam-lhes a
cabeça num tonel cheio de urina e fezes enquanto os outros presos recitavam em
volta a fórmula do batismo. Para que o torturado não se asfixiasse, de tempos a
tempos a sua cabeça era levantada do tonel, para que ele pudesse respirar, e de
novo a mergulhavam no magma repugnante. Um dos que sistematicamente
sofreram essa tortura criara o seguinte automatismo, que durou cerca de dois
meses: era ele próprio que todas as manhãs imergia a cabeça no tonel, sob as
gargalhadas dos re-educadores.
Quanto aos seminaristas, Turcanu obrigava-os a
oficiar nas missas negras que ele próprio encenava, sobretudo durante a Semana
Santa, na vigília pascal. Alguns desempenhavam o papel de meninos do coro,
outros de padres. O texto litúrgico de Turcanu era, evidentemente, pornográfico
e parafraseava de forma demoníaca o original. A Virgem Maria era referida como “a
grande prostituta”, e Jesus “o imbecil que morreu na cruz”. O seminarista que
desempenhava o papel de padre devia despir-se completamente; depois ele era
envolvido por um lençol sujo de excrementos e lhe penduravam no pescoço um falo
confeccionado com sabão, miolo de pão e pulverizado com DDT. Na noite que
antecedeu a Páscoa de 1950, os estudantes em curso de reeducação foram
obrigados a passar diante do “padre” e a beijar o falo, dizendo: “Cristo
ressuscitou”.” (pág. 495)
29. “A gestão do passado nos Estados pós-comunistas
mereceria que lhe fosse dedicado um livro. (...) em nenhum lado o Partido
Comunista foi proibido. Os antigos partidos no poder mudaram geralmente de
nome, exceto na República Tcheca, onde foi organizado um “referendo” no
interior desse partido que se pronunciou pela continuação do antigo nome. Por
quase todos os lugares, os dirigentes mais comprometidos foram afastados e as
direções renovadas.
Houve poucos processos contra os responsáveis da
repressão ainda vivos. O mais espetacular desenrolou-se na Romênia, sob a
forma de um pseudo-processo que terminou com a execução de Nicolas Ceausescu e
da sua mulher, em 25 de dezembro de 1989, tendo o cadáver do ditador sido
mostrado na televisão. Na Bulgária, Todor Jivkov, antigo secretário-geral do
Partido, foi julgado em abril de 1991, mas ficou em liberdade. Não há notícia
de que tenha sido aplicado um dos mandamentos da nomenclatura búlgara: “Tomamos
o poder pelo sangue, só pelo sangue o cederemos”. Na Albânia, alguns dirigentes
comunistas foram condenados por... “utilização abusiva dos bens públicos e
infração à igualdade dos cidadãos”, entre eles a viúva de Enver Hoxha,
condenada a 11 anos de prisão. Na Tchecoslováquia, Miroslav Stepan, membro da
direção e secretário do PCT para Praga, foi condenado em 1991 a dois anos de
prisão como responsável pelas violências cometidas contra a manifestação de 17
de novembro de 1989. Vários processos foram finalmente abertos contra os dirigentes
da RDA, sendo o mais recente o do seu último presidente, Egon Krenz, em agosto
de 1997. Condenado a seis anos e meio de prisão efetiva, ele foi posto em
liberdade enquanto espera o resultado de um recurso. Alguns processos continuam
em aberto, como, na Polônia (...) A justiça pós-comunista instaurou vários
processos contra os funcionários do aparelho de segurança, diretamente
implicado nos crimes. Um dos mais interessantes é talvez o processo polonês,
visando Adam Humer e os seus 11 co-acusados, oficiais do Departamento de
Segurança, por crimes na repressão da oposição ao regime no final dos anos 40 e
início dos anos 50; (...) Esses crimes foram efetivamente qualificados de
crimes contra a humanidade, os únicos que, segundo a legislação, nunca prescrevem.
No final desse processo, que durou dois anos e meio, o antigo coronel foi
condenado a nove anos de prisão em 8 de março de 1996. Na Hungria, os autores
do tiroteio de 8 dezembro de 1956 em Salgotarjan, uma cidade industrial a
nordeste de Budapeste, foram condenados em janeiro de 1995 por crimes contra a
humanidade. No entanto, a sentença do Supremo Tribunal de janeiro de 1997
decide que a partir de 4 de novembro de 1956, e devido à intervenção ilegal das
forças soviéticas, houve estado de guerra entre os dois países e que esses atos
devem ser qualificados como atos de guerra contra civis e não crimes contra a
humanidade.
Esses exemplos (...) nos levam a constatar que
numerosos crimes continuam impunes, cobertos pela prescrição, ausência de
testemunhas ou de provas. Uma vez depurada, a justiça tomou-se independente do
poder executivo e assegura o respeito pelos princípios dos “países civilizados”
como se diz. Assim, o princípio da prescrição e o princípio da
não-retroatividade da lei (...). Em vários países, a legislação foi modificada
para que certos crimes pudessem ser julgados. (...) [Na Polônia] a nova lei
coloca o comunismo no mesmo nível dos ocupantes e dos fascistas, introduzindo a
noção de crimes stalinistas, que são definidos deste modo: “Os crimes
stalinistas, no sentido da lei, cobrem os atentados contra indivíduos ou grupos
humanos, cometidos pelas autoridades do poder comunista ou por ele inspirados
ou tolerados no período até 31 de dezembro de 1956.” Esses crimes não prescrevem.
Em 1995, os artigos do Código Penal sobre a prescrição foram modificados, e os
crimes mais graves, cometidos contra as liberdades cívicas antes de 31 de
dezembro de 1989, podem ser julgados num prazo de 30 anos a partir de 1º de
janeiro de 1990. Na República Tcheca, a lei sobre a “ilegitimidade do regime
comunista e a resistência face a ele”, adotada em 1993, prolonga até ao fim de
1999 o prazo de prescrição para crimes cometidos entre 1948 e 1989 que possam
ser classificados como “políticos”.
(...) Em minha opinião, o castigo dos culpados
não foi aplicado a tempo, de maneira adequada. (...) No entanto, a maneira como
os alemães abriram os arquivos da Stasi, a polícia política da RDA, a todos os
cidadãos que se sintam atingidos, parece-me judiciosa. Ela dá responsabilidade,
e cada um é convidado a investigar o seu próprio “processo” — o teu marido
era informante, agora já sabes, é contigo...
A ferida, apesar de tudo, continua aberta.”
(págs. 533-537)
Jean-Luis Margolin, Pierre Rigoulot
30. “A repressão na China comunista foi uma réplica
das práticas do “Irmão Mais Velho” a URSS de um Stalin, cujo retrato estava
ainda em evidência em Pequim no início dos anos 80? Não, se levarmos em conta a
quase ausência de expurgos assassinos no interior do Partido Comunista ou a
relativa discrição da polícia política (...) Mas sim, seguramente, se
considerarmos — sem contar com a guerra civil — todas as mortes
violentas atribuíveis ao regime: (...) estimativas sérias apontam para algo
entre seis e dez milhões o número de vítimas diretas, incluindo centenas de
milhares de tibetanos; além disso, dezenas de milhões de “contrarevolucionários”
passaram longos períodos das suas vidas no sistema penitenciário, onde talvez
20 milhões tenham perecido. Sim, ainda mais definitivamente, se incluirmos os “mortos
a mais”, contando entre 20 e 43 milhões, dos anos 1959-1961, aqueles do
indevidamente chamado “Grande Salto Adiante”, vítimas de uma fome inteiramente
provocada pelos projetos aberrantes de um homem, Mao Zedong (...)
Depois do desaparecimento da URSS (1991) e da
descomunização do Leste Europeu, (...) a sorte dos farrapos dispersos do “socialismo
real” depende do futuro do comunismo na China — país que desempenha,
aliás, o papel de uma “segunda Roma” do marxismo-Lêninismo, (...) era lá que os
comunistas coreanos, japoneses e por vezes vietnamitas iam procurar refúgio e
abastecimento.” (págs. 545-546)
31. “na China, o conjunto da moralidade baseia-se
no respeito pelas obrigações familiares: se estas são rejeitadas, tudo é
permitido. O indivíduo submete-se totalmente à família de substituição que a
seita passa a ser então. O resto da humanidade está condenado ao inferno no
Além — e à morte violenta neste mundo. (...) segundo uma proclamação de
1130, “matar pessoas é cumprir o dharma (lei búdica)”; o assassinato é um ato
de compaixão, uma vez que liberta o espírito; o roubo favorece a igualdade; o
suicídio é uma felicidade invejável; quanto mais horrível for a própria
morte, maior será a sua recompensa (...) esses cruéis milenarismos ajudam a
compreender por que razão alguns triunfaram e por que a violência que os
acompanhou pôde, em dado momento, parecer normal, quase banal, aos olhos de
muita gente.” (págs. 548-549)
32. “o “Grande Terror” stalinista dos anos
1936-1938 foi precedido pelos sovietes chineses, responsáveis, segundo certas
estimativas, por 186.000 vítimas (...) A grande maioria dessas mortes foi
provocada por resistências à reforma agrária radical quase imediatamente
implementada, a um rigoroso sistema de cobrança de impostos e à mobilização de
jovens justificada pelas necessidades militares. O esgotamento da população é
tal que, onde o comunismo foi particularmente radical (Mao foi criticado, em
1931, pelos seus excessos terroristas, que alienavam o povo, e perdeu
provisoriamente a direção), a ofensiva das forças de Nanquim encontra apenas
uma fraca resistência. (...)
O Partido reprime, mas faz compromisso: inicia
— sem nunca o confessar — o cultivo e a exportação em grande escala
de ópio, que, até 1945, proporcionará entre 26% e 40% das receitas públicas da
base. (...) os militantes locais são com freqüência oriundos das camadas mais
abastadas do campesinato, sobretudo de famílias de proprietários de terras
(...) vindos para o comunismo baseado num nacionalismo radical. Os militantes “centrais”,
os soldados do exército “regular”, por seu turno, são na maior parte recrutados
entre os marginais, os desqualificados: bandidos, vadios, mendigos, militares
sem soldo, e, no caso das mulheres, prostitutas. Mao pensava, já em 1926, em
lhes atribuir um papel importante na revolução: “Essas pessoas são capazes de
bater-se muito corajosamente; chefiadas de uma maneira adequada, podem tornar-se
uma força revolucionária.” (...) O resto da população, excetuando uma minoria
de opositores resolutos (também eles freqüentemente membros da elite), brilha
sobretudo pela sua passividade, pela sua “frieza”, dizem os dirigentes
comunistas — incluindo esse “campesinato pobre e semi-pobre” que é suposto
constituir a base da classe do PC no meio rural...” (págs. 556-558)
33. “O elemento-chave da reforma agrária foi o “comício
da acidez”: diante do povoado reunido, compareciam o ou os proprietários,
freqüentemente apelidados de “traidores” (...) os militantes têm de dar uma ajuda,
maltratando fisicamente e humilhando os acusados; então, geralmente, a
conjunção dos oportunistas com aqueles que têm contas a ajustar permite que
jorrem as denúncias, e a temperatura começa a subir; (...) não é difícil,
depois disso, chegar à condenação à morte dos proprietários (evidentemente
acompanhada pelo confisco dos respectivos bens), muitas vezes executada no
próprio local e no mesmo instante, com a participação mais ou menos ativa dos
camponeses. (...) a maior parte dos autores está de acordo em admitir cifras
entre dois e cinco milhões de mortos. Além disso, de quatro a seis milhões de “kulaks”
chineses contribuíram para encher os novíssimos laogai, e sem dúvida o dobro
foi colocado, por períodos de tempo variáveis, “sob controle” das autoridades
locais: vigilância constante, as tarefas mais duras, perseguições em caso de “campanhas
de massas”. Houve, no total, 15 mortos na Longa Curva, (...) o processo de
reforma começou mais cedo nesse povoado; ora, depois de 1948, certos excessos
foram banidos. E eles haviam atingido duramente essa aldeia: massacre de toda a
família do presidente da associação católica local (com a igreja tendo sido
fechada), espancamento e confisco dos bens dos camponeses pobres que se tinham
solidarizado com os ricos, procura de “origens feudais” ao longo de três
gerações (o que não deixava praticamente ninguém livre de uma “requalificação”
funesta), torturas até à morte para obter a localização de um mítico tesouro,
interrogatórios sistematicamente acompanhados por torturas com ferros em
brasa, extensão das perseguições aos familiares dos executados, violação e
destruição de sepulturas, a arbitrariedade de um quadro, antigo bandido, católico
renegado que obriga uma menina de 14 anos a se casar com um dos seus filhos, e
declara a quem queira ouvi-lo: “A minha palavra é lei, e aquele que eu condeno
à morte tem de morrer.” No outro extremo da China, no Yunnan, o pai de He Liyi,
polícia do antigo governo, é por essa simples razão classificado como “proprietário
de terras”. Tratando-se de um funcionário, é imediatamente condenado a
trabalhos forçados; em 1951, no auge da reforma agrária local, declarado “inimigo
de classe” ele é levado e exibido de povoado em povoado, e em seguida condenado
à morte e executado, sem qualquer espécie de processo.” (págs. 565-566)
34. “As cidades: “tática do salame”
expropriações. (...) O sistema de controle, em grande parte montado ainda
antes da vitória, rapidamente dispôs de meios consideráveis: 5,5 milhões de
milicianos no fim de 1950, 3,8 milhões de propagandistas (ou ativistas) em
1953, 75.000 informantes encarregados de coordená-los (e de vigiar sua
dedicação ... ). Na cidade, (...) os grupos de residentes (de 15 a 20 lares)
são encabeçados por comissões de moradores, por sua vez subordinadas às
comissões de rua ou de bairro. Nada deve escapar-lhes: toda e qualquer visita
noturna ou estada de um dia ou mais de um “forasteiro” deve ser objeto de
registro junto à comissão de moradores; há um cuidado especial para que todos
disponham do respectivo certificado de inscrição no registro dos habitantes da
cidade, que se destina especialmente a evitar o êxodo rural “selvagem”. Desse
modo, mesmo aquele que tem menos responsabilidade desempenha um papel de
auxiliar da polícia. (...)
em maio de 1949, (...) as tropas da Segurança
(...) abrem cárceres improvisados, ao mesmo tempo que nas prisões já existentes
a superlotação e as condições são de uma dureza sem precedentes: até 300
detidos numa cela com 100 metros quadrados, e 18.000 na penitenciária central
de Xangai; rações alimentares de fome, esgotamento pelo trabalho; disciplina
desumana com violências físicas constantes (por exemplo, coronhadas, pelo
simples fato de erguer a cabeça, obrigatoriamente baixa durante toda a marcha).
A mortalidade, até 1952 seguramente muito superior a 5% anuais (média dos anos
1949-1978 no laogai), chega a atingir 50% em seis meses numa determinada
brigada do Guangxi, ou 300 mortos por dia em certas minas do Sharixi. As
torturas mais variadas e mais sádicas são fatos comuns, sendo a mais freqüente
a suspensão pelos pulsos ou pelos polegares; um religioso chinês morre, depois
de 102 horas de interrogatório contínuo. Os indivíduos mais terrivelmente
brutos agem sem o menor controle: um comandante de campo teria assassinado ou
mandado enterrar, vivos, 1.320 detidos, num ano, além de cometer inúmeros
estupros. As revoltas, nessa ocasião muito numerosas (os detidos, incluindo um
grande número de militares, não tinham tido ainda tempo de serem moralmente
esmagados), conduzem a verdadeiras matanças: vários milhares dos 20 mil
degredados dos campos petrolíferos de Yanchang são executados; em novembro, mil
dos cinco mil amotinados de um estaleiro florestal são enterrados vivos.”
(págs. 567-569)
35.”A maior fome da história (1959-1961).
Durante muito tempo, circulou no Ocidente um mito tenaz: sim, a China não é um
modelo de democracia, mas “Pelo menos Mao conseguiu dar uma tigela de arroz a
cada chinês”. Infelizmente, nada é mais falso: por um lado, como vamos ver, a
modesta ração alimentar disponível por habitante não aumentou provavelmente de
forma significativa entre o início e o fim do seu reinado, e isto a despeito de
esforços impostos a um campesinato, raramente vistos no curso da história; por
outro lado, e sobretudo, Mao e o sistema que ele criou foram diretamente
responsáveis por aquela que continuará a ser (assim esperamos... ) a mais
mortífera fome de todos os tempos, em todos os países, em valor absoluto.”
(pág. 576)
36.”o resultado final revela cruamente a
incompetência econômica, o desconhecimento do país, o isolamento na
auto-suficiência e a utopia voluntarista da direção do PC e, singularmente, do
seu chefe. (...) Esse êxito aparente [da coletivização dos campos] e os bons
resultados das colheitas de 1957 levam Mao a propor e impor aos reticentes, em
agosto de 1958, tanto os objetivos do Grande Salto (...), como o suposto meio
de lá chegar: a comuna popular.
Trata-se, simultaneamente, e em muito pouco
tempo (“três anos de esforços e de privações, mil anos de felicidade”, assegura
um slogan na moda), de modificar completamente o modo de vida dos camponeses
— obrigados a agruparem-se em unidades de milhares, quando não de dezenas
de milhares de famílias em que tudo se torna comum, a começar pelas
refeições —,de desenvolver a produção agrícola numa proporção enorme,
graças a obras faraônicas de irrigação e a novos métodos de cultivo e,
finalmente, de suprimir a diferença entre o trabalho agrícola e o trabalho
industrial através da instalação por todo lado de unidades industriais,
sobretudo pequenos altos-fornos (...)
Trabalha-se dia e noite sob as bandeiras
vermelhas drapejando ao vento, produz-se “mais, com maior rapidez, melhor e
mais economicamente”; os responsáveis locais anunciam recorde atrás de recorde,
e em conseqüência os objetivos sobem constantemente: até 375 milhões de
toneladas de cereais para 1958, o dobro dos 195 milhões de toneladas (um número
bastante bom) do ano anterior; em dezembro, anunciar-se-á que o objetivo foi
atingido. É verdade que tal anúncio é feito depois de mandarem para os campos o
pessoal do Departamento Central de Estatísticas, seguramente “direitista”, uma
vez que manifestara dúvidas (...) ajustam-se para cima as normas de produção,
aumentam-se as entregas obrigatórias, manda-se desguarnecer os campos em
proveito das oficinas. (...) A “emulação socialista” vai cada vez mais longe:
supressão total das parcelas individuais e dos mercados livres, abolição do
direito de abandonar o coletivo, recolha de todos os utensílios metálicos para
transformá-los em aço, e por vezes das portas de madeira para aquecer os
altos-fornos. A título de compensação, todas as reservas alimentares comuns
serão consumidas no curso de memoráveis banquetes. Como se pode lembrar, “era
considerado revolucionário comer carne” no Shanxi: nenhum problema, a colheita
ia ser fabulosa... (...)
Mas, logo, os dirigentes (...) têm de render-se
à evidência: caíram na sua própria armadilha (...) Em 1958-1959, quanto maior
for a mentira, mais rápida será a promoção do seu autor: o descontrole e os
excessos são totais, os “termômetros” estão todos quebrados, e os potenciais
críticos estão na prisão ou nas obras de irrigação. (...)
Certos métodos agronômicos vindos diretamente do
acadêmico soviético Lyssenko, (...) revelam-se desastrosos: apesar de Mao
afirmar que “com companhia [os grãos] nascem facilmente, quando crescem juntos
sentem-se mais satisfeitos” — aplicação criativa da solidariedade de
classe à natureza —, as sementeiras ultra-apertadas (cinco a dez vezes a
densidade normal) matam as jovens plantas, os sulcos profundos secam a terra ou
fazem subir os sais; o trigo e o milho não se dão muito bem nos mesmos campos,
e a substituição da cevada tradicional pelo trigo nas altas terras frias do
Tibet é pura e simplesmente catastrófica. Outros “erros” são de iniciativa
nacional: o extermínio dos pardais comedores de grãos fez proliferar os
parasitas; muitas obras hidráulicas, executadas às pressas ou mal coordenadas
umas com as outras, revelam-se inúteis ou até perigosas (erosão acelerada,
risco de ruptura brutal às primeiras cheias), e a sua construção custa caro em
vidas humanas (10.000 dos 60.000 trabalhadores numa obra no Henan); a vontade
de apostar o futuro numa enorme colheita de cereais (...) arruína as “pequenas”
atividades agrícolas anexas, incluindo a pecuária, freqüentemente
indispensáveis ao equilíbrio alimentar; no Fujian, as plantações de chá,
geradoras de um fortíssimo valor acrescentado, são transformadas em arrozais.
(...)
grandes obras de irrigação freqüentemente não
terminadas ou atamancadas, (...) aberrantes distribuições de mão-de-obra: as
empresas do Estado contratam em 1958 a bagatela de 21 milhões de novos
operários, ou seja, um crescimento, nesse setor, de 85% num único ano! (...) os
trabalhadores dos campos ocupam-se de tudo (grandes obras, micro-aciarias cuja
produção vai geralmente inteira para o refugo, destruição dos antigos povoados
e construção de novos alojamentos, etc.), menos do cultivo; em face das “miríficas”
colheitas de 1958, considerou-se até mesmo possível reduzir em 13% a área
semeada de cereais. O resultado dessa combinação de “delírio econômico e
mentira política” foram as colheitas de cereais de 1960, que os camponeses já
não tinham sequer forças para apanhar. O Henan, primeira província a
declarar-se “100% hidraulizada” (todos os trabalhos de irrigação e de
represamento possíveis foram em princípio realizados), será também uma das mais
duramente atingidas pela fome (entre dois e oito milhões de mortos, conforme as
estimativas). (...) Será, pois, no ano seguinte, a dieta de sopa rala de arroz
para (quase) toda a gente, e o slogan da moda será a frase surrealista lançada
por um Diário do Povo de finais de 1959: “Viver de uma maneira frugal num ano
de abundância”. A imprensa nacional pôs-se a preconizar as virtudes da sesta, e
os professores de Medicina insistem na fisiologia particular dos chineses, que
lhes torna supérfluas gorduras e proteínas. (...)
A fome afetará todo o país: em Pequim, a quadra
de basquete é transformada em horta, e dois milhões de galinhas invadem as
varandas da capital; nenhuma província escapa ao flagelo, a despeito da
imensidão do país e à extrema diversidade das condições naturais e das
culturas. (...) o preço do arroz nos mercados livres (ou no mercado negro) foi
multiplicado por 15, e às vezes por 30. O dogma maoísta agrava o desastre: uma
vez que as comunas populares devem proporcionar a auto-suficiência, as
transferências de víveres entre províncias são drasticamente reduzidas. As
pessoas sofrem com a escassez de carvão (os mineiros, esfomeados, foram
procurar comida, ou então cultivam hortas), e também com a tendência à apatia e
à dissolução suscitadas pela fome. (...)
O fato de a fome ter sido de natureza política
está demonstrado pela concentração de uma grande parte da mortalidade nas
províncias governadas por maoístas radicais, ao passo que, em tempos normais,
são antes exportadoras de alimentos: Sichuan, Henan, Anhui. Esta última, no
Centro-Norte, é sem dúvida a mais afetada: a mortalidade cresce 68%o, em 1960
(contra cerca de 15%o num período normal), enquanto a natalidade cai para 11 %o
(contra cerca dos 30%o habituais). Resultado: a população sofre uma diminuição
de dois milhões de pessoas (6% do total) num único ano. Os ativistas do Henan
estão convencidos, como Mao, de que todas as dificuldades são provocadas pelo
fato de os camponeses esconderem os cereais: (...) É contra o conjunto dos
rurais que, no outono de 1959, é lançada uma ofensiva de estilo militar, (...)
Pelo menos dez mil camponeses são aprisionados, e muitos morrem de fome. É dada
ordem de quebrar todos os utensílios de cozinha dos particulares (os que não
foram transformados em aço inutilizável), a fim de impedir qualquer espécie de
auto-alimentação e de tirar-lhes a vontade de rapinar os bens das comunidades.
É mesmo proibido fazer fogo, num momento em que o rude inverno se aproxima! As
distorções da repressão são terríveis: tortura sistemática de milhares de
detidos, crianças mortas, cozinhadas e em seguida utilizadas como adubo (...)
No Anhui, onde se proclama a intenção de “conservar a bandeira vermelha, mesmo
com 99% de mortos”, os quadros voltam às boas e velhas tradições de enterrar as
pessoas vivas ou torturá-las com ferros em brasa. Os funerais são proibidos:
receia-se que o seu número assuste os sobreviventes e se transformem em
manifestações de protesto. É proibido recolher as inúmeras crianças
abandonadas: “Quantas mais forem recolhidas, mais serão abandonadas”.Os aldeões
desesperados que tentam chegar às cidades são recebidos a tiro. O distrito de
Fenyang conta mais de 800 mortos, e 12,5% da sua população rural, ou seja,
28.000 pessoas são punidas segundo diversas modalidades. A situação ganha contornos
de uma verdadeira guerra anti-camponesa. (...) A mortalidade pela fome
ultrapassa os 50% em certos povoados; por vezes, só os quadros que abusaram do
seu poder estão em condições de sobreviver. E, como no Henan, os casos de
canibalismo são numerosos (63 reconhecidos oficialmente), em especial através
de “associações” onde as pessoas trocam os seus filhos pelos de outros, para os
comerem.
(...) milhões de famintos que tentam
alimentar-se cozendo ervas, casca de árvore e folhas de choupo, errando pelas
estradas em busca de qualquer coisa para comer, tentando atacar os comboios de
mantimentos, lançando-se por vezes em motins provocados pelo desespero (...)
não lhes serão enviados quaisquer alimentos, mas por vezes virá a ordem para
fuzilar os quadros locais “encarregados”; uma maior sensibilidade às doenças e
às infecções multiplica a mortalidade; as mulheres, esgotadas, quase não são
mais capazes de conceberem e parirem filhos. Os detidos do laogai não são os
últimos a morrer de fome, (...) os camponeses vizinhos vão por vezes às portas
do campo de concentração mendigar um pouco de comida: três quartos dos membros
da brigada de trabalho de Jean Pasqualini em agosto de 1960 estavam, um ano
depois, mortos ou moribundos, e os sobreviventes tinham sido levados a procurar
grãos de milho não digeridos nos excrementos dos cavalos, e vermes na bosta das
vacas. Servem igualmente de cobaias para a experimentação de sucedâneos para a
fome, como a mistura de farinha com 30% de pasta de papel na confecção do pão, ou
de plâncton dos pântanos com caldo de arroz; o primeiro provoca no campo
inteiro uma onda de terríveis constipações, acarretando numerosas mortes; o
segundo causa igualmente doenças, a que os mais fracos não resistem.
Finalmente, chega-se ao sabugo de milho moído, que se espalhará pelo país
inteiro.
Em todo o país, a mortalidade salta de 11%o em
1957 para 15%o em 1959 e 1961, e sobretudo para 29%o em 1960. A natalidade cai
de 33%o em 1957 para 18%o em 1961. Sem ter em conta o déficit de nascimentos
(talvez 33 milhões), as perdas ligadas à sobre-mortalidade causada pela fome
podem ser avaliadas, de 1959 a 1961, entre 20 milhões (número semi-oficial na
China desde 1988) e 43 milhões de pessoas. De fato, estamos em presença da fome
mais grave (pelo menos em números absolutos) de toda a história da China (...)
e sem dúvida também da história do mundo. (...)
A mortalidade nos campos era, em tempos normais,
30% a 60% superior à das cidades; passa para o dobro (29%o contra 14%o) em
1960.” (págs. 576-584)
37.”O desastre de 1959-1961, “grande segredo” do
regime, para cuja denegação muitos visitantes estrangeiros contribuíram naquele
momento, nunca foi, porém, reconhecido como tal. (...) o Grande Salto continua
a escapar a toda e qualquer condenação, pelo menos publicamente.” (pág. 587)
38.”Um “Gulag” escondido: o laogai. Os
armários do comunismo chinês estão decididamente cheios de cadáveres (...) A
imensa câmara frigorífica que é o arquipélago concentracionário não foge à
regra. Constituído por um bom milhar de campos de trabalho de grande dimensão
(ver mapa), bem como por uma infinidade de centros de detenção, ele raramente é
objeto da menor referência nas obras dedicadas à República Popular, mesmo as
mais pormenorizadas ou relativamente recentes. É verdade que o aparelho
repressivo soube esconder-se: não se é condenado a “detenção' ou a “trabalhos
forçados” (...), mas à “reforma” ou à “reeducação pelo trabalho”. Os principais
lugares de internamento estão, muito logicamente, disfarçados de empresas
públicas: assim, é preciso saber que a “tinturaria industrial de Jingzhou”
(único nome que figura sobre a porta) é na realidade a prisão nº 3 da
província de Hubei, ou que a “fazenda de chá de Yingde” corresponde à unidade
de recuperação nº 7 da província de Guangdong. As próprias famílias dos
internos só escrevem para uma caixa postal anônima. (...) Por ocasião de seus
raros deslocamentos “pelo mundo”, os prisioneiros devem fazer-se invisíveis.
Habituados a manterem sempre a cabeça baixa quando fora das suas celas, e a
calarem-se, eles recebem, numa estação de trem, estas estranhas instruções: “Comportem-se
naturalmente no interior do trem. É proibido, repito, proibido baixar a cabeça.
Se alguém precisar ir aos lavabos, deverá fazer sinal ao guarda: punho fechado
com o polegar estendido. Falar e fumar serão autorizados. Nada de brincadeiras.
Os guardas têm ordens para disparar.” (pág. 590)
39.”O sistema penitenciário mais povoado de
todos os tempos. O laogai, ou seja, parte nenhuma... Nesse buraco negro, o
sol radioso do maoísmo enterra dezenas de milhões de indivíduos (50 milhões no
total até meados dos anos 80, segundo Harry Wu) (...) Muitos morrerão: se
cruzarmos as duas avaliações aproximativas de Jean-Luc Domenach (uma dezena de
milhões de detidos por ano, em média — entre 1% e 2% da população chinesa,
conforme os momentos —, e 5% de mortalidade anual), veremos que 20 milhões
de chineses morreram em cativeiro, quatro milhões dos quais durante o Grande
Salto, entre 1959 e 1962 (...)
A grande massa dos detidos encontra-se, pois, em
vastos campos de trabalho, espalhados por todo o país, situando-se os maiores e
mais povoados nas zonas semi-desérticas do Norte da Manchúria, da Mongólia
Interior, do Tibet, do Xinjiang e sobretudo do Qinghai, verdadeira “província
penitenciária” (...) O seu campo nº 2 é talvez o maior da China, com pelo
menos 50.000 deportados. Os campos das regiões mais remotas do Oeste e do
Nordeste têm a reputação de serem muito duros, mas globalmente os ritmos de
trabalho são mais esgotantes nas fábricas-prisões das zonas urbanas do que nas
grandes fazendas penitenciárias do Estado.” (págs. 591-593)
40.”À procura do “homem novo”. (...) Um
documento interno da Segurança especifica o processo a que o suspeito deve ser
submetido: “O reconhecimento dos crimes é uma condição prévia obrigatória; a
submissão à lei é o começo da reforma. Reconhecimento e submissão são as duas
primeiras lições que é necessário ensinar ao prisioneiro e ter presentes no
espírito ao longo de todo o processo de reforma”; uma vez conseguida a ruptura
com o passado, o prisioneiro pode começar a ser penetrado por “idéias justas”: “É
imperativo instituir os quatro princípios educativos de base — para voltar
a encaminhar as idéias políticas do detido no bom sentido: o marxismo-Lêninismo,
a fé no maoísmo, no socialismo, no Partido Comunista e na ditadura democrática
do povo.” (...)
Pasqualini, criado no catolicismo, ficou
surpreendido ao encontrar a meditação, a confissão e o arrependimento
transformados em práticas marxistas-Lêninistas — situando-se a diferença
na dimensão obrigatoriamente coletiva e pública desses atos: o objetivo não é
restaurar o laço entre o homem e Deus, mas fundir o indivíduo numa massa
totalmente submetida ao Partido. (...) o objetivo é sempre o mesmo: levar à
abdicação da personalidade. O chefe da cela, também ele um prisioneiro,
freqüentemente um antigo membro do PC, desempenha aqui papel fundamental: “Lançava-nos
infatigavelmente em discussões de grupo ou em histórias que contivessem
princípios morais a observar. Todos os outros temas a que os nossos espíritos
poderiam abandonar-se — a família, a comida, o desporto, os passatempos
ou, evidentemente, o sexo — eram absolutamente proibidos. (...)
A pretensa “lavagem cerebral” descrita por
certos ocidentais não é mais do que isso: em si mesma, nada de muito sutil, a
imposição bastante rude de uma ideologia grosseira, que tem resposta para tudo
precisamente porque é simplista. Trata-se principalmente de não dar ao
prisioneiro a mínima possibilidade de expressão autônoma. Os meios (...) mais
originais são uma subalimentação sistemática, que enfraquece tanto a
resistência como a vida interior, e uma saturação permanente através da
mensagem da ortodoxia, num contexto em que não se dispõe de tempos livres
(...), nem de espaço de intimidade (celas superlotadas, luzes acesas toda a
noite, muito poucos objetos pessoais autorizados), nem, evidentemente, da menor
latitude para exprimir um ponto de vista original (...)
Um grau acima, é a “Prova”, ou a “luta”. Nada é
espontâneo — a vítima é escolhida pela direção; o lugar (cela ou pátio), o
momento e a intensidade são predeterminados mas a atmosfera anda próxima (pelo
menos no assassinato) dos progroms camponeses da reforma agrária: “A nossa
vítima era um prisioneiro com cerca de 40 anos, acusado de ter feito uma falsa
confissão. 'É um contra-revolucionário empedernido!', gritava um guarda através
de um megafone de cartolina. [...] Sempre que ele levantava a cabeça para dizer
qualquer coisa — fosse verdade ou mentira, não nos interessava — nós
o afogávamos sob uma tempestade de gritos: 'Mentiroso!', 'Vergonha da
humanidade! , ou mesmo 'Pulha!' A prova continuou nessa linha durante três
horas, e a cada minuto que passava tínhamos mais frio e mais fome, e
tornávamo-nos mais malvados. Penso que seríamos capazes de fazê-lo em pedaços
para conseguirmos o que queríamos. Mais tarde quando tive tempo para refletir,
compreendi que também nós tínhamos sido as nossas próprias vítimas e tínhamos
submetido a nós mesmos à prova, preparando-nos mentalmente para aceitar a
posição do governo com um consentimento apaixonado, fossem quais fossem os
méritos do homem que atacávamos.”
(...) a imensa maioria dos prisioneiros
apresente, depois de algum tempo, todos os sinais exteriores da submissão. (...)
A eficácia da reeducação tem a ver com a combinação sinérgica de dois poderosos
meios de pressão psicológica: uma infantilização radical, em que o Partido e a
administração se tornam pai e mãe, que re-ensinam o preso a falar, a andar (de
cabeça baixa, a correr, guiado pela voz do guarda), a controlar o apetite e a
higiene, etc., numa relação de dependência absoluta; a fusão no grupo,
responsabilizável por cada gesto, por cada palavra, família de substituição no
preciso momento em que os contatos com a verdadeira família tomaram-se quase
impossíveis, em que as esposas dos detidos são incitadas a divorciarem-se, e os
filhos a renegarem os pais. (...) “Falar por slogans, reagir como um autômato,
é simultaneamente aniquilar-se, fazer um “suicídio psíquico”, e proteger-se
contra os problemas, sobreviver. Pensar que é fácil conservar a sua identidade,
duplicando sua personalidade seria certamente demasiado otimista.” (pág.
594-601)
41.”Uma execução sumária no laogai. No meio
deles todos estava o cabeleireiro, acorrentado. Uma corda à volta do pescoço,
firmemente presa à cintura, mantinha-lhe a cabeça baixa. Tinha as mãos atadas
atrás das costas. Os guardas empurraram-no até à beira do estrado, bem à nossa
frente. Ele ali ficou, de pé, em silêncio, como um penitente amarrado, enquanto
dos rastos deixados pelos seus pés se elevava um ligeiro vapor. Yen tinha
preparado um discurso.
“Tenho algo de horrível a dizer-lhes. (...) Esse
ovo podre, que aqui vêem à frente de vocês, foi preso por um problema moral
(...) Agora descobrimos que, durante a sua estada aqui, seduziu um jovem
prisioneiro de 19 anos (...) ao cometer o seu ato aqui, não só pecou
moralmente, como também manchou a reputação da prisão e da grande política da
Reforma pelo Trabalho. É por isso que, considerando os seus crimes repetidos, o
representante do Supremo Tribunal Popular vai agora ler-lhes a sua sentença.”
O homem de uniforme azul-escuro avançou e leu o
sombrio documento, uma recapitulação dos delitos que terminava com a decisão do
tribunal popular: a morte, com execução imediata da sentença. (...) Antes mesmo
que o representante do tribunal popular acabasse de ler a última palavra, o
(...) guarda que se encontrava atrás dele empunhou uma enorme pistola e
estourou-lhe os miolos. Uma chuva de sangue e de matérias cerebrais voou pelos
ares e foi cair sobre aqueles entre nós que estavam nas primeiras filas.
Desviei os olhos da figura horrível que, no chão, era agitada pelos últimos
sobressaltos, e vomitei. Yen re-apareceu e falou novamente: “Que isto lhes
sirva de aviso. (...) doravante não haverá mais qualquer espécie de indulgência
aqui. A partir de hoje, todos os delitos de ordem moral serão punidos da mesma
maneira. Agora, voltem para as suas celas e discutam o que acaba de acontecer.”
(págs. 607-608)
42.”A Revolução Cultural: um totalitarismo
anárquico (1966-1976). Ao lado dos horrores astronômicos, e quase
desconhecidos, da reforma agrária ou do Grande Salto, os cerca de 400 mil a um
milhão de mortos (esse último número é o mais verossímil) relatados pela
maioria dos autores a propósito dos estragos da “Grande Revolução Cultural
Proletária” poderiam parecer quase modestos. Se, mais do que qualquer outro
episódio da história contemporânea da China, ela impressionou o mundo inteiro e
permanece na memória de todos, foi pelo radicalismo extremo do seu discurso e
de alguns dos seus atos” (pág. 608)
43.”Os autores da revolução. (...) Os que
têm entre 14 e 22 anos em 1966 serão para Mao instrumentos muito entusiastas, à
proporção de seu grande fanatismo doutrinário e de sua grande frustração.
Fanatismo: primeira geração totalmente educada depois da revolução de 1949,
(...) Depressa essa geração aprendeu que, como diz uma canção dos Guardas
Vermelhos: “O Partido é a nossa mãe e o nosso pai”. E, em caso de conflito de
paternidade, a escolha deve ser clara: renegar os genitores. Pasqualini conta
deste modo a visita que um “horroroso fedelho de 10 ou 11 anos” faz ao pai,
internado no laogai, em 1962: “Não queria vir aqui — brada ele,
altivamente —, mas a minha mãe me obrigou. Você é um contra-revolucionário
e uma desonra para a família. Você causou graves prejuízos ao governo. Merece
estar na prisão. Tudo o que posso dizer é que seria melhor se reformar, pois,
do contrário, você terá o que merece”. Até os guardas ficaram chocados com
essas palavras. O prisioneiro voltou lavado em lágrimas (o que é proibido) à
sua cela, murmurando: “Se soubesse que isso iria acontecer, tinha-o
estrangulado no dia em que nasceu”. (...) Esse garoto teria cerca de 15 anos em
1966, a idade certa para se tornar um Guarda Vermelho... Os mais jovens foram
sempre os mais violentos, os mais obstinados a humilhar as suas vítimas.”
(págs. 612-614)
44.”O momento de glória dos Guardas Vermelhos.
As perseguições desencadeadas em 1966 por esses estudantes e colegiais que
continuam a ser chamados, essencialmente, os “rebeldes revolucionários” ficaram
como o símbolo do conjunto da Revolução Cultural. (...)
Tudo começa em 19 de junho de 1966, na seqüência
da leitura, na rádio, do dazibao (cartaz redigido em grandes caracteres) de
Nie Yuanzi, professor assistente de Filosofia em Beida (universidade de Pequim,
a mais prestigiosa do país), que convoca à luta diabolizando o adversário: “Quebremos
todos os controles e as maléficas conjuras dos revisionistas, resolutamente,
radicalmente, totalmente, completamente! Destruamos todos os monstros, todos
os revisionistas do tipo Kruschev!” Milhões de estudantes organizam-se, então,
e encontram sem dificuldade nos seus professores, nos encarregados pelas universidades,
e depois nas autoridades municipais ou provinciais que tentam defendé-los, os “monstros
e demônios” a serem eliminados; com uma certa imaginação, chamam-lhes ainda de “gênios
malfeitores” ou então “fantasmas bovinos” ou “espíritos reptilianos”. (...) o
apelo à destruição “de todos os monstros” que desencadeou o movimento na
universidade de Pequim não permaneceu letra morta. O “inimigo de classe”,
adornado com cartazes, com chapéus e por vezes com roupas ridículas (sobretudo
as mulheres), forçado a posturas grotescas (e penosas), com o rosto sujo de
tinta preta, obrigado a latir como um cachorro, “de quatro”, deve perder a sua
dignidade humana. Um professor chamado Ma (“cavalo”) teve de comer erva.
(...) Em agosto de 1967, a imprensa de Pequim vocifera: os antimaoístas são “ratazanas
que correm pelas ruas, matem-nos, matem-nos”. Encontramos essa mesma
desumanização no período da reforma agrária, em 1949: assim, um proprietário de
terras é atrelado a um arado e obrigado a lavrar a terra à força de chicote: “Você
nos tratou como bestas, agora você pode ser o nosso animal!”, gritam os
camponeses. Vários milhões de “animais” como esse foram exterminados. Alguns
foram até mesmo comidos: 137 pelo menos, no Guangxi, sobretudo diretores de
colégio, e isto com a participação dos quadros locais do PC; certos Guardas
Vermelhos mandaram servir carne humana na cantina; foi aparentemente também o
caso de certas administrações. Harry Wu fala de um executado do laogai, em
1970, cujo cérebro foi devorado por um guarda da Segurança. Ele tinha
— crime sem igual — ousado escrever: “Derrubem o presidente Mao”.
Não se sabe o que, naquele instante, motiva mais
esses Guardas Vermelhos cujo grosso cinturão vai, durante muito tempo,
constituir a principal arma: parecem oscilar constantemente entre um real
desejo de transformação social e o happening de um verão particularmente
quente, (...) repete-se interminavelmente o novo slogan simplista: “Há
sempre razão para nos revoltarmos”, inventado em 18 de maio por Mao (...) os
intelectuais e tudo o que os rodeia (livros, pinturas, porcelanas, bibliotecas,
museus, edifícios culturais) são presas fáceis, a respeito das quais todos os
clãs do poder podem pôr-se de acordo.
(...) Os funcionários nunca utilizam a palavra “intelectual”
sem acrescentarem o epíteto “fedorento”; Jean Pasqualini, que limpava as
sandálias ao sair de um chiqueiro de porcos, passou por essa experiência com um
guarda, que praguejou: “O seu cérebro é ainda mais sujo do que isso, e cheira
ainda pior! Pare imediatamente! Isso é um hábito burguês. Limpe antes o seu
cérebro!” No início da Revolução Cultural, os alunos receberam um pequeno
compêndio de Mao referente ao ensino, no qual o Grande Timoneiro condena o
saber dos professores “incapazes de distinguir os cinco grãos” e que, “quanto
mais aprendem, mais estúpidos se tornam”. Defende igualmente o encurtamento dos
estudos e a supressão da seleção através de exames: a universidade deve formar “vermelhos”,
e não “peritos”, e deve ser prioritariamente aberta aos “vermelhos” de
nascimento.
Com experiência de duas ou três autocríticas, a
maioria dos intelectuais tem pouca vontade de resistência. E os velhos
escritores fazem uma pantomima, durante horas, do “avião”, até caírem
esgotados, diante dos jovens que os insultam; desfilam pelas ruas com o boné de
burro enfiado na cabeça; são muitas vezes espancados, brutalmente. Alguns
morrem, muitos outros suicidam-se, (...) O sadismo e o fanatismo dos “revoltosos”
carrascos são terríveis. Assim, na universidade de Xiamen (Fujian): “Certos
[professores], incapazes de suportar as sessões de ataques e de críticas,
adoeceram e morreram praticamente na nossa presença. Não senti qualquer pena
deles, nem dos poucos que se atiraram pelas janelas, nem daquele que se lançou
numa das nossas famosas fontes termais, onde morreu cozido”. (...)
(...) os templos foram trancados (mas muitos
foram destruídos por vezes em autos-de-fé públicos, ou danificados), os
tesouros escondidos, os afrescos recobridos com massa para sua proteção, os
livros escondidos. Queimam-se os cenários e o guarda-roupa da ópera de Pequim,
suprimida em proveito das “óperas revolucionárias de tema contemporâneo” da
Senhora Mao, (...) A própria Grande Muralha é em parte destruída: usam-se os
seus tijolos para a construção de chiqueiros. Zhou manda então murar
parcialmente e proteger com tropas o Palácio Imperial de Pequim. Os diversos
cultos são muito afetados: dispersão dos monges do célebre complexo budista dos
montes Wutai, manuscritos antigos queimados, destruição parcial dos seus 60
templos; auto-de-fé de exemplares do Alcorão dos Uígures de Xinjiang, proibição
de festejar o ano-novo chinês (...) saque dos túmulos “imperialistas” em certos
cemitérios, quase-proibição das práticas cristãs, (...) Os Guardas Vermelhos,
esses garotos tragicamente sérios, resolvem proibir esses “derivativos da
energia revolucionária” que são os gatos, as aves e as flores (tornando-se,
assim, contra-revolucionário plantá-las em seu jardim), e o primeiro-ministro
tem de intervir para impedir que o sinal vermelho nos semáforos passe a
significar “Avançar”. Nas grandes cidades — principalmente em
Xangai —, grupos de adolescentes tosquiam sumariamente os cabelos
compridos, rasgam com tesouras as calças justas, arrancam os saltos altos,
abrem à força os sapatos de bico pontiagudo, obrigam as lojas a adotar nomes “convenientes”
(...) Os contraventores arriscam-se a ver as suas portas seladas com um retrato
de Mao, que seria sacrilégio rasgar. Os Guardas Vermelhos detêm os transeuntes
nas ruas e obrigam-nos a recitar uma citação de Mao, à sua escolha. (...) O
mais duro, para milhões de famílias “negras”, foram, no entanto, as revistas
dos Guardas Vermelhos. Misturando procura de “provas” de supostos crimes,
confisco de prata e de ouro (...) e vandalismo puro e simples, partem, pilham e
muitas vezes confiscam parte dos objetos ou mesmo tudo no interior de uma
residência. Humilhações, insultos e pancadas são quase obrigatórios para os
revistados. Alguns defendem-se, o que é pior para eles; uma simples expressão
de desdém, uma palavra levemente desrespeitosa, uma recusa de confessar onde
estão escondidos os “tesouros”, e vem a chuva de pancadas, e muitas vezes o
assassinato; ou então, na melhor das hipóteses, o saque generalizado da casa.
(...)
juntando todos os períodos da Revolução
Cultural, encarceramento de três a quatro milhões de quadros (num total de
aproximadamente 18 milhões) e de 400.000 militares (...) Entre os intelectuais,
142.000 professores, 53.000 técnicos e cientistas, 500 professores de Medicina
e 2.600 artistas e escritores teriam sido perseguidos, sendo muitos deles
mortos ou levados ao suicídio. Em Xangai, (...) calcula-se oficialmente, em
1978, que dez mil pessoas teriam sido mortas com extrema violência devido aos
excessos da Revolução Cultural. (págs. 616-623)
45.”O primeiro pogrom. 'ouvimos, ao
aproximarmo-nos da entrada principal da escola, gritos e vociferações. Alguns
camaradas de classe corriam para nós, gritando: “A luta começou! A luta
começou!” (...) vi um grupo de professores, 40 ou 50 no total, dispostos em
filas, com a cabeça e a cara pintadas com tinta preta (...) Tinham pendurados
ao pescoço cartazes com inscrições como “fulano de tal, autoridade acadêmica reacionária”,
“beltrano, inimigo de classe”, “fulano, defensor da via capitalista”, “beltrano,
chefe de bando corrupto” — todos qualificativos tirados dos jornais. Todos
os cartazes estavam marcados com cruzes vermelhas, o que dava aos professores o
aspecto de condenados à morte à espera da execução. Todos tinham na cabeça
bonés de burro, nos quais estavam pintados epítetos semelhantes, e carregavam
nas costas vassouras sujas, espanadores e sapatos.
Tinham também pendurado em seus pescoços baldes
cheios de pedras. Avistei o diretor: o balde que carregava era tão pesado, que
o fio metálico cortara-lhe profundamente a pele, e ele cambaleava. Todos
descalços, batiam em gongos ou panelas dando a volta no campo, ao mesmo tempo
que gritavam... “Eu sou o gângster fulano!” Finalmente, caíram todos de
joelhos, queimaram incenso e suplicaram a Mao Zedong que “fossem perdoados
pelos seus crimes”. (...) obrigaram essas pessoas a comer matérias das latrinas
e insetos; submeteram-nas a choques elétricos; fizeram com que se ajoelhassem
em cima de cacos de vidro; forçaram-nas à performance do “avião”,
pendurando-as pelos braços e pelas pernas.
Os primeiros a pegar nos porretes e a torturar
foram os bárbaros da escola: filhos de quadros do Partido e de oficiais do
exército [...] Grosseiros e cruéis, eles estavam habituados a jogar com a
influência dos pais e a brigar com os outros alunos. Sendo de tal modo
incompetentes nos estudos, eles estavam para ser expulsos, e culpavam
provavelmente os professores por esse fato. Encorajados pelos provocadores,
os outros alunos gritavam: “Batam neles!”, e, lançando-se contra os
professores, davam-lhes murros e pontapés. Os mais tímidos foram obrigados a
apoiá-los, gritando a plenos pulmões e erguendo o punho. (...)
O professor Chen, que tinha mais de 60 anos e
sofria de hipertensão, foi arrastado para fora às 11h 30min, exposto ao sol do
verão durante mais de duas horas, e depois forçado a desfilar com os outros
carregando um cartaz e batendo num gongo. Em seguida, arrastaram-no para o primeiro
andar de um edifício escolar, depois novamente para baixo, batendo-lhe com os
punhos e com cabos de vassoura ao longo de todo o trajeto. (...) O professor
Chen desmaiou várias vezes, mas eles faziam-no voltar a si jogando baldes de
água fria em seu rosto. Quase não conseguia mexer-se: tinha os pés cortados
pelos vidros e rasgados pelos espinhos. (...) “Por que não me matam?” — gritava.
“Matem-me!”
Isso durou seis horas, até que ele perdeu o
controle dos seus excrementos. Os atormentadores tentaram enfiar um bastão no
reto. Caiu pela última vez. (...) chamaram o médico da escola e disseram-lhe: “Verifique
cuidadosamente se ele morreu mesmo de hipertensão. Você não tem o direito de
defendê-lo!” O médico examinou-o e declarou que tinha morrido em conseqüência
de torturas. Então, alguns o agarraram e começaram a bater nele (...) o médico
acabou escrevendo na certidão de óbito: “Morte devida a um súbito ataque de
hipertensão”. (págs. 623-625)
46.”Os revolucionários e seu Mestre. Lenda
dourada: durante muito tempo, o Ocidente considerou os Guardas Vermelhos como
primos, apenas um pouco mais fanáticos, dos revolucionários de 68, seus
contemporâneos. (...) A energia imensa dessas dezenas de milhões de jovens
foi puramente destrutiva (...) não fizeram estritamente nada e não modificaram
em nenhum ponto assinalável os princípios básicos do totalitarismo instalado.
Os Guardas Vermelhos pretenderam freqüentemente imitar os princípios da Comuna
de Paris de 1871, (...) tudo era decidido por minúsculos aparelhos
auto-proclamados; a alternância só se fazia à força, em conflitos constantes,
no interior das organizações e das estruturas administrativas que conseguiram
controlar.“ (págs. 625-626)
Resumo: a Revolução Cultural degenerou em anarquia,
multiplicaram-se as lutas entre gangues revolucionárias. Os distúrbios
paralisavam cidades inteiras, a produção despencou, não havia de fato
administração e alguns grupos saiam de controle. O Exército foi a única instituição
que ficou cuidadosamente a resguardo. Por fim, Mao ordenou ao Exército Vermelho
liquidar com a Revolução Cultural. A repressão foi violentíssima e a maior
causa de mortes durante a Revolução Cultural, por vezes utilizou artilharia
pesada e napalm. O futuro presidente do PC chinês Hua Guofeng, ganhou-se o
título de “carniceiro de Hunan”.
47.”Em 1986, os efetivos nas prisões caíram para
cerca de cinco milhões (e não voltarão a subir depois): menos da metade de 1976
e, com 0,5% da população total, (...)
A presunção de inocência continua a não ser
admitida, o crime contra-revolucionário não foi retirado dos códigos (...) Em
dezembro de 1994, o termo “laogai” foi substituído pelo mais banal “prisão”,
mas a Gazeta Legal acha conveniente precisar: “A função, o caráter e as tarefas
da nossa administração penitenciária permanecerão inalterados” A maior parte
dos julgamentos decorre sem a presença do público, e os processos continuam
freqüentemente expeditivos (...) e não motivados. (...)
A China, com vários milhares de execuções todos
os anos, é responsável por mais de metade das execuções que ocorrem em todo o
planeta; e o número continua aumentando em relação ao final dos anos 70 (...)
Em 1983, o aumento da criminalidade provocou talvez um milhão de detenções, e
provavelmente um mínimo de dez mil execuções (...) tenta-se amalgamar todos os
elementos perturbadores: muitos intelectuais, sacerdotes e estrangeiros foram
importunados quando da campanha Contra a Poluição Espiritual, lançada logo em
seguida. Quanto à ocupação da Praça de Tian'anmen (...) : mil mortos
aproximadamente, talvez dez mil feridos em Pequim, centenas de execuções na
província, muitas vezes mantidas em segredo ou disfarçadas sob a capa de casos
de delito comum; cerca de dez mil prisões em Pequim, 30 mil em toda a China.
(...) as represálias contra as famílias, prática que se julgaria abandonada,
recomeçaram em grande escala (págs. 642-643)
Crimes, terror e segredo na Coréia do Norte, Pierre Rigoulot
Vietnã: os impasses de um comunismo de guerra, Jean-Louis Margolin
Laos: populações em fuga, Pierre Rigoulot
Camboja: no país do crime desconcertante, Pierre Rigoulot
Resumo: O capítulo sobre a
Coréia do Norte afirma que é um comunismo calcado no modelo soviético, iniciado
com reforma agrária, etc., e que a partir de um certo momento teve ajuda
decisiva da China. Apresenta a guerra da Coréia como um exemplo raro de
premeditação de guerra expansiva comunista. Descreve os campos, as violências,
torturas, execuções, terrorismo contra os intelectuais, promoção de atentados
criminais no exterior, “crimes” definidos pelo sistema, expurgos, ditadura e
fome espantosa pela quebra da produção agrária. Como saldo final calcula:
48.”podemos adicionar aos 100.000 mortos em
conseqüência dos expurgos no interior do Partido do Trabalho, 1,5 milhão de
mortos devido ao internamento concentracionário e 1,3 milhão de mortos na
seqüência da guerra desejada, organizada e desencadeada pelos comunistas uma
guerra inacabada que aumenta regularmente a quantidade das vítimas devido a
operações pontuais, mas mortíferas (ataques de comandos nortecoreanos contra o
Sul, atos de terrorismo, etc.). Haveria que se adicionarem a esse balanço as
vítimas diretas e sobretudo indiretas da subnutrição. É nessa área que hoje
faltam mais dados, mas também é aí que, agravando-se a situação, os elementos
podem, dramaticamente e muito proximamente, tornar-se mais pesados. Mesmo que
nos contentemos, desde 1953, com 500 mil vidas perdidas devido à fragilização
face às doenças, ou diretamente provocadas pela escassez alimentar (...)
chegamos, para um país com 23 milhões de habitantes e submetido a um regime
comunista durante 50 anos, a um resultado global de três milhões de vítimas.”
(pág. 671)
Resumo: O capítulo sobre o Vietnã é muito breve. Faz um
histórico da guerra e um apanhado geral das vítimas causadas pelo comunismo,
métodos, etc.
49.”É no momento em que a vitória parece possível,
em dezembro de 1953, que se resolve lançar a reforma agrária nas zonas
libertadas. (...) O seu ritmo, bem como os seus objetivos, são os mesmos da
reforma agrária chinesa (...) Mas os métodos, ferozes e deliberadamente
mortíferos, são também os aplicados no grande vizinho do Norte: em cada
povoado, os ativistas “atiçam” — muitas vezes com dificuldade — os
camponeses classificados como pobres e médios (por vezes com a ajuda de grupos
de teatro), depois segue-se o “processo de rancor” contra a ou as vítimas,
bodes expiatórios, com freqüência escolhidas arbitrariamente (há uma quota a
respeitar: de 4% a 5% da população os eternos 5% do maoísmo), e a morte, ou
pelo menos a prisão e o confisco dos bens; o opróbrio é alargado a toda a
família — como na China. [a Sra Lang, mãe de dois vietcongs] Esgotada pela
detenção, acabou por confessar tudo e foi condenada à morte. O seu filho, que
se encontrava na China, foi chamado de volta ao país, aviltado, despojado das
suas condecorações e condenado a 20 anos de prisão.” Tal como em Pequim, alguém
torna-se culpado apenas por ser acusado, uma vez que o Partido não se engana
jamais. (...) Mais valia ter matado o pai e a mãe e confessá-lo do que nada
dizer sem ter feito mal algum”.
O desencadear de violência é alucinante. O tema
do ódio contra o adversário — de classe ou não — é repisado: segundo
Lê Duc Tho, futuro Prêmio Nobel da Paz juntamente com Henry Kissinger, “se se
pretende levar os camponeses a pegarem em armas, é preciso de imediato
despertar neles o ódio ao inimigo “. Em janeiro de 1956, o órgão oficial do PC,
Nhan Dan, escreve: “A classe dos latifundiários nunca se manterá sossegada
enquanto não for eliminada.” Como acontece ao norte da fronteira, a palavra de
ordem é: “Antes dez mortos inocentes do que um só inimigo sobrevivente.” (...)
A paranóia quebra todas as barreiras: heróis da
guerra da Indochina são assassinados ou internados em campos de concentração.
(...) As baixas, dificilmente quantificáveis, são de qualquer modo
catastróficas: provavelmente em torno de 50.000 execuções nas zonas rurais
(excluindo qualquer combate), ou seja, de 0,3% a 0,4% da população total
(estamos muito próximos da taxa média de vítimas provocadas pela reforma
agrária chinesa); entre 50.000 e 100.000 pessoas teriam sido presas; estima-se
em 86% a proporção de depurados nas células rurais do Partido, chegando por
vezes aos 95% de exclusões entre os quadros da resistência antifrancesa. (...)
Entre 1952 e 1956, a “ retificação,” torna-se
quase permanente. Em certos “Seminários”, a tensão é tal, que se torna
necessário retirar lâminas e facas aos homens e deixar a luz acesa durante toda
a noite para tentar prevenir os suicídios. É no entanto do exército que virá o
fim do expurgo. As perseguições atingem tão dura mente os seus quadros, que
eles começam a reagir com freqüência através da deserção e da passagem para o
Vietnã do Sul, que a instituição se assusta” (pág. 675-677)”
50. “Viva
Ho Chi Minh!
O farol do proletariado!
Viva Stalin, a grande árvore eterna!
Abrigando a paz à sua sombra!
Matem, matem de novo, que a mão não pare um
minuto;
Para que arrozais e terras produzam arroz em
abundância,
Para que os impostos sejam cobrados rapidamente.
Para que o Partido perdure, marchemos em
conjunto com a mesma energia.
Adoremos o presidente Mao,
prestemos um culto eterno a Stalin.” (págs.
678-679)
51.”Durante algumas breves semanas, o milhão de
antigos funcionários e militares do regime de Saigon pôde mesmo acreditar que a
tão exaltada “política de clemência do presidente Ho” não seria demagogia;
assim, eles não temeram registrar-se junto às novas autoridades. Depois, no
início de junho, eles foram convocados para reeducação — ”por três dias”
para os simples soldados, e “por um mês” para os oficiais e altos funcionários.
Na realidade, os três dias transformaram-se em três anos, e o mês em sete ou
oito anos; os últimos sobreviventes “reeducados' só regressaram em 1986. (...)
as estimativas credíveis variam entre 500.000 e um milhão (numa população de
cerca de 20 milhões de habitantes) (...)
Inúmeros campos, próximos das cidades, não têm
arame farpado, e o regime é mais constrangedor do que penoso. Para os “casos
difíceis”, pelo contrário, é o envio para as terras altas do Norte, insalubres
e longínquas. (...) o isolamento é absoluto, os cuidados médicos mínimos, e a
sobrevivência depende muitas vezes do envio de víveres pelas famílias, que se
arruínam para consegui-lo. A subnutrição é igualmente dramática nas prisões
(200 gramas diários de um arroz avermelhado cheio de pedras) (...) Acumulam-se
70 ou 80 presos numa cela para 20, e qualquer passeio é inviabilizado pela
construção apressada de novos edifícios de detenção no pátio (...) O clima
tropical e a falta de arejamento tornam a respiração difícil (os presos
revezam-se durante todo o dia diante de uma única e minúscula abertura), os
cheiros são insuportáveis, as doenças de pele permanentes. A própria água é
severamente racionada. (...) A tortura está dissimulada, mas presente, como as
execuções; o isolamento sanciona a menor transgressão do regulamento nesses
lugares, come-se tão pouco, que o resultado mais provável é a morte ao fim de
algumas semanas. (...) haveria que se acrescentar o calvário das centenas de
milhares de boat-people que fogem à repressão e à miséria e que muitas
vezes morrem afogadas ou assassinadas pelos piratas.” (págs. 680-682)
Resumo: O caso do Laos está intimamente ligado à queda
do Vietnã. Por volta de 300.000 pessoas (10% do total) fugiu do país. 45.000
delas morreram nas estradas. Nesse total inclui-se o 90% dos intelectuais,
técnicos y funcionários do país. Em 1991, 55.000 laosianos aguardavam um
destino nos campos de refugiados da Tailândia.
52.”A quase-totalidade dos funcionários do antigo
regime (cerca de 30.000) foi enviada para “seminários” — ou, mais
exatamente, para campos de reeducação, freqüentemente para as províncias do
Norte e do Leste, longínquas, insalubres e próximas do Vietnã; por lá ficaram
cinco anos, em média. Os “criminosos” mais empedernidos (oficiais do exército e
da polícia), cerca de 3.000, foram internados em campos de regime severo nas
ilhas Nam Ngum. A própria antiga família real foi presa em 1977, e o último
príncipe herdeiro morreu na prisão. Tudo isto ajuda a explicar o grande número
de fugas do país, elas próprias, por vezes, origem de dramas: não era raro os
soldados dispararem sobre os fugitivos.” (pág. 683-685)
Resumo: Os métodos genocidas dos Khmers Vermelhos já
eram conhecidos pela população antes da queda de Phnom Penh. Os guerrilheiros
comunistas tinham praticado morticínios de massa e esvaziados cidades inteiras
durante a guerra que precedeu à tomada da capital. (cfr. p. 691)
53. “O esvaziamento integral de Phnom Penh, (...) A
população não sofreu naquela ocasião brutalidades sistemáticas, embora não
tenham faltado os recalcitrantes mortos “para servir de exemplo”, nem a
execução dos soldados derrotados. Os deportados não são em geral despojados dos
seus haveres, nem sequer revistados. As vítimas diretas e indiretas da
evacuação — feridos ou operados expulsos dos hospitais, velhos ou doentes
isolados; igualmente, numerosos suicidas, por vezes famílias inteiras... —
foram talvez cerca de dez mil, em dois a três milhões de habitantes da capital,
e algumas centenas de milhares no que respeita às outras cidades (de 46% a 54%
da população total teriam sido jogados nas estradas!). É o traumatismo que
fica, indelével, na memória dos sobreviventes. Eles tiveram de deixar as suas
casas e os seus bens em menos de 24 horas, embora um pouco tranqüilizados pela
mentira piedosa de que “é apenas por três dias”, mas estonteados por um
turbilhão humano onde era fácil perder-se, por vezes definitivamente, os
parentes. Soldados inflexíveis, que nunca sorriam, os arrastavam: (...) Foram
aterrorizados com cenas de morte e de desespero, e não receberam em geral a
menor ajuda (alimentos, cuidados... ) dos Khmers Vermelhos durante um lento
êxodo, que para alguns durou semanas.
Essa primeira deportação correspondeu também à
primeira triagem dos ex-urbanos, feita nos cruzamentos de estradas. (...) Sob o
pretexto de poder servir ao novo regime na capital, ou de ir acolher
condignamente Sihanuk, chefe de Estado nominal até 1976, procurava-se
selecionar o maior número de funcionários de grau médio ou superior, e sobretudo
de oficiais do exército. A maioria foi imediatamente liquidada, ou pereceu
pouco depois na prisão.” (págs. 692-693)
54.”Gerir inteiramente os enormes fluxos de
citadinos estava ainda fora do alcance do fraco aparelho khmer vermelho,
geralmente estimado, em 1975, em cerca de 120.000 militantes e simpatizantes
(na sua maioria muito recentes), metade dos quais combatentes.” (pág. 693)
55.”A afluência dos citadinos perturbava a vida
rural e o equilíbrio entre recursos e consumo: nas férteis planícies de arrozais
da região 5 (Noroeste), aos 170.000 habitantes de origem juntavam-se 210.000
recém-chegados! Além disso, o PCK fez de tudo para aumentar o abismo entre o “antigo
povo”, ou povo de base, por vezes designado como “70” porque estiveram de um
modo geral sob o domínio dos Khmers Vermelhos desde o princípio da guerra - e o
“novo povo”, ou “75 “, ou ainda “ 17 de abril”. Ele estimulou o “ódio de
classe” dos “Proletários patriotas” contra os “capitalistas-lacaios dos
imperialistas”. (...) apenas os “antigos” (...) tinham alguns direitos, em
especial, no princípio, o de cultivar uma parcela privada, e o de comerem na
cantina obrigatória antes dos outros, e um pouco melhor; (...) Do lado dos “antigos”,
tudo se fez para opor os “camponeses pobres” aos latifundiários aos “camponeses
ricos” e aos ex-comerciantes (rapidamente a coletivização passou a ser total).
(...) os antigos servidores do Estado e dos intelectuais. O destino dessas duas
últimas categorias foi geralmente infeliz: (...) elas foram “expurgadas”, muitas
vezes até ao seu completo desaparecimento.” (págs. 694-695)
56.”Freqüentemente, é proposto aos Novos que “regressem
ao seu povoado natal”, ou que vão trabalhar para uma cooperativa menos dura,
menos insalubre, com melhor alimentação. Invariavelmente, os voluntários
(muitas vezes numerosos) viam-se enganados e atirados para um lugar ainda mais
sinistro, mais mortífero. Pin Yathay, ele próprio vítima desse logro, soube
decifrar o enigma: “Tratava-se, realmente, de uma sondagem para detectar as
tendências individualistas. [...] o citadino provava que não se libertara das
suas lastimáveis propensões. (...) Apresentando-nos como voluntários,
denunciávamo-nos a nós mesmos.” (págs. 695-696)
57.”A época dos expurgos e dos grandes massacres
(1976-1979). (...) Um estudo da CIA, baseado em dados aproximados, estima
o déficit demográfico total (incluindo a diminuição do número de nascimentos
induzida pelas dificuldades) em 3.800.000 pessoas entre 1970 e 1979 (as
perdas da guerra de 1970-1975 estão, portanto, incluídas), para uma população
subsistente em 1979 de cerca de 5.200.000 habitantes. (...) A ruralização
forçada dos citadinos (...) fez, no máximo, 400.000 vítimas (...) Henri Locard,
raciocinando por extrapolação, atribui só às prisões — o que deixa de lado
as execuções “no local”, também elas numerosas — pelo menos de 400.000 a
600.000 vítimas; Sliwinski afirma um total de um milhão de assassinatos. A
doença e a fome foram sem dúvida as mais mortíferas, com provavelmente, no
mínimo, 700.000 mortos; Sliwinski fala de 900.000, incluindo os efeitos diretos
da ruralização.” (págs. 700-703)
58.”Alvos e suspeitos. (...) A mortalidade é
muito forte nos ex-citadinos: dificilmente se encontra uma família intacta.
Ora, trata-se de cerca de metade da população total. Assim, em cada 200
famílias instaladas num povoado da zona Norte, cerca de 50 sobreviviam em
janeiro de 1979, e apenas uma tinha perdido “só” os avós. (...) Os monges (...)
foram sistematicamente eliminados. (...) Em escala nacional, de 60.000 ficariam
reduzidos a cerca de um milhar. A quase-totalidade dos fotógrafos de imprensa
desapareceu. (...) segundo Sliwinski, 82,6% dos oficiais do exército
republicano, 51,5% dos diplomados do ensino superior e principalmente 41,9% dos
residentes de Phnom Penh desapareceram. (...) O punhado de católicos cambojanos
foi, segundo Sliwinski, o grupo étnico ou religioso mais martirizado: 48,6% de
desaparecidos.” (págs. 703-706)
59.”a insensibilidade niveladora do regime impunha
grosso modo as mesmas normas de produção, geralmente sem fornecer o mínimo
apoio. (...) Pin Yathay avalia a mortalidade de um campo florestal, no final de
1975, em um terço em quatro meses; no povoado de arroteamento de Don Ey, a fome
é geral, deixa de haver nascimentos e registram-se talvez 80% de mortos no
total.” (págs. 708-709)
60.”A morte cotidiana no tempo de Pol Pot. “No
Kampuchea Democrático, não havia prisões, nem tribunais, nem universidades, nem
liceus, nem moeda, nem correios, nem livros, nem prática de esportes, nem
distrações... Não era tolerado qualquer tempo morto numa jornada de 24 horas. A
vida cotidiana dividia-se assim: 12 horas de trabalhos físicos, duas horas para
comer, três horas para repouso e educação, sete horas de sono. (...) Os Khmers
Vermelhos utilizavam freqüentemente parábolas para justificarem os seus atos e
ordens contraditórios. Comparavam o indivíduo a um boi: 'Vocês vêem esse boi
que puxa o arado. Ele come onde nós mandamos. Se o deixarmos pastar nesse
campo, ele come. Se o levarmos para outro campo onde não haja erva suficiente,
ele pasta, apesar de tudo. Não se pode deslocar. É vigiado. E, quando lhe
dizemos que puxe o arado, ele o puxa. Ele nunca pensa na mulher, nem nos
filhos.'“
“Perder-te não é uma perda. Manter-te não tem
qualquer utilidade” — todos os testemunhos referem essa temida fórmula.
Foi efetivamente uma descida ao inferno o que viveram os cambojanos, alguns
desde 1973 (pág. 711)
61.”convinha aceitar a sua nova condição,
intermediária (...) entre a de uma besta de carga e a de um escravo de guerra”.
(...) eles tinham de habituar-se ao desaparecimento de qualquer espécie de
ensino, de qualquer liberdade de deslocamento, de qualquer comércio lícito, de
qualquer medicina digna desse nome, da religião, da escrita, assim como à
imposição de normas estritas de vestimenta (uniforme negro, de mangas
compridas, abotoado até ao pescoço) e de comportamento (nada de demonstrações
de fato, nada de disputas ou de injúrias, nada de queixumes ou de choros).
Tinham de obedecer cegamente a todas as ordens, assistir (com o ar de quem
escuta atentamente) às intermináveis reuniões, gritar ou aplaudir à ordem,
criticar os outros e autocriticar-se (...) mesmo uma deficiência física
evidente não evitava a sanção aplicada aos “preguiçosos”, e aos incapazes: a
morte. (...) A fuga se assemelha muitas vezes a um suicídio adiado: tentada
freqüentemente sem bússola e sem mapa, normalmente na estação das chuvas, a fim
de ser perseguido ou detectado com maior dificuldade, com provisões
insuficientes e o organismo enfraquecido pelas privações (...) uma grande
maioria dos fugitivos desapareceu, antes mesmo de ser localizada por uma eventual
patrulha khmer vermelha, que tinha ordens para não mostrar qualquer clemência.
(págs. 712-713)
62.”A desorganização dos campos. Dos dois
lados da estrada, arrozais abandonados estendiam-se a perder de vista. Procurei
em vão os trabalhos de transplantação. Nada, a não ser, após cerca de dez
quilômetros, um grupo de trabalho composto por algumas moças. (...) Grupos de
homens e mulheres perambulavam de um lugar a outro, com ar vago, de trouxa nos
ombros. Pelo seu vestuário, roupas andrajosas, outrora de cores vivas, calças
justas ou saias rasgadas, adivinhava-se que eram “novos”, antigos citadinos
banidos da cidade. Esses citadinos tinham sido, numa primeira fase, enviados
para as regiões privadas de recursos do Sudoeste, nas quais, diante da miséria
total, deviam passar a ter uma “nova concepção do mundo”. (...) Morria-se de
fome em todo o país, embora somente um quinto das terras semeadas fosse explorado!
(...) Arregalei os olhos. O espetáculo era terrível: uma miséria humana
indescritível, uma desorganização total, um desperdício lamentável...” (pág.
715)
63.”A irrigação era a pedra angular do Plano (...)
Ao lado de alguns diques, canais ou barragens bem-concebidos (...) quantos
foram levados na primeira enxurrada (afogando eventualmente algumas centenas de
construtores ou de camponeses), quantos fizeram circular a água em sentido
inverso, quantos se encheram de lodo em poucos meses (...) Esse desprezo pela
técnica e pelos técnicos era acompanhado por uma rejeição do mais elementar
bom senso camponês (...) O calendário dos trabalhos agrícolas era determinado
para uma região inteira, fossem quais fossem as condições ecológicas locais.
(...) alguns quadros acharam por bem cortar a totalidade das árvores nas zonas
cultivadas, incluindo as árvores frutíferas; para destruir o abrigo de alguns
pardais, que prejudicavam a plantação, eliminavam-se fontes de alimentação da
população esfomeada. (...)
A fome que atingiu milhões de cambojanos durante
anos foi também utilizada, conscientemente, para melhor escravizar. Seres
enfraquecidos, incapazes de constituírem reservas de alimentos, eram menos
tentados a fugir. Permanentemente obcecados com a alimentação, a mola real do
pensamento autônomo, a contestação e a própria sexualidade era quebrada entre
eles. (...) um regime que tinha querido sacrificar tudo à mística do arroz
(...) tornou esse alimento cada vez mais mítico. O Camboja exportava regularmente,
desde os anos 20, centenas de milhares de toneladas de arroz por ano,
alimentando, frugal mas corretamente, a massa da sua população. Ora, uma boa
parte dos cambojanos passou a conhecer apenas a sopa de arroz rala (contendo
aproximadamente o equivalente a quatro colheres de café de arroz por pessoa),
desde que as cantinas coletivas foram generalizadas, no início de 1976. (...)
Nada escapava à fome violenta dos famintos,
(...) nem as formigas vermelhas ou as grandes aranhas devoradas cruas, nem os
rebentos, cogumelos e tubérculos da floresta, os quais, mal selecionados ou
insuficientemente cozinhados, provocavam um grande número de mortes.
Atingiram-se extremos insuspeitos, mesmo para um país pobre: disputar com os
porcos o farelo da sua gamela, ou fazer um banquete com ratos do campo. (...)
Houve também “as doenças da fome”, das quais a
mais corrente, e a mais grave, era o edema generalizado (...) O doente, sempre
suspeito de ser um preguiçoso, só podia deixar de trabalhar na condição de ir
para a enfermaria ou para o hospital, onde as rações alimentares eram reduzidas
à metade e onde o risco de epidemias era muito elevado.” (págs. 715-718)
64.”Da destruição das referências à animalização.
(...) O canibalismo vingativo também existia, como na China: Ly Heng evoca o
caso de um soldado khmer vermelho, desertor, forçado, antes de ser executado, a
comer as suas próprias orelhas. O consumo de fígado humano é o mais citado,
(...) Haing Ngor relata a extirpação, numa prisão, do feto, do fígado e dos
seios de uma mulher grávida assassinada; o feto é jogado fora (onde outros já
se encontram secando dependurados na beirada do telhado do cárcere), o resto é
levado, com esse comentário: “Esta noite temos fartura de carne!” Ken Khun
recorda um chefe de cooperativa preparando um remédio para os olhos a partir de
vesículas biliares humanas (e distribuindo-o liberalmente pelos seus
subordinados!) enquanto exaltava as qualidades palatales do fígado humano (...)
Paradoxo do regime dos Khmers Vermelhos: afirmando querer implementar uma
sociedade de igualdade, de justiça, de fraternidade, de abnegação, e, tal como
os outros poderes comunistas, provocou-se um desencadeamento espantoso de
egoísmo, do cada um por si, de desigualdade no poder, de arbitrariedade. Para
sobreviver, era necessário sobretudo, e antes de mais nada, saber mentir,
enganar, roubar e permanecer insensível.” (págs. 719)
65.”os maridos ficavam longe das esposas por
semanas a fio, ou mais; os filhos eram afastados dos pais; os adolescentes
podiam passar seis meses sem autorização para ver a família, sem notícias, para
por vezes descobrirem, quando regressavam, que todos haviam morrido. (...) Não
era bem visto uma mãe dedicar-se demasiado ao filho, mesmo pequeno. O poder dos
maridos sobre as esposas, dos pais sobre os filhos foi abolido: podia-se ser
executado por ter esbofeteado a esposa, ser denunciado pelos filhos por lhes
ter batido, ou forçado à autocrítica por uma injúria ou uma discussão. (...)
devemos ver nesses aspectos a vontade (...) de dissipar todas as relações de
autoridade.” (pág. 720)
66.”'Não sou um ser humano, sou um animal', conclui
na sua confissão o antigo dirigente e ministro Hu Nim. O homem vale só o mesmo
que o animal? Podia-se perder a vida por deixar um boi fugir, e ser torturado
até à morte por ter batido em um. Houve homens amarrados a arados e fustigados
sem piedade por não se terem mostrado à altura da vaca que ajudavam. A vida
humana tem um preço tão baixo... “Você tem tendências individualistas. [...]
Você deve [...] se libertar dos seus sentimentos”, retorquia um soldado khmer
vermelho a Pin Yathay, que pretendia manter junto de si o filho ferido. (...)
Tendo ido ajudar uma vizinha gravemente doente e os seus dois filhos, ouviu
esta observação de um Khmer Vermelho: 'Não é seu dever ajudá-la; pelo
contrário, isso prova que você ainda tem piedade, sentimentos de amizade. É
preciso renunciar a esses sentimentos e extirpar do seu espírito as propensões
individualistas. Volte imediatamente ao seu lugar.'“ (pág. 721)
67.”[a morte] era quase sempre discreta, oculta.
Haverá quem associe essa discrição no assassinato à invariável delicadeza
dos militantes e quadros do PCK: “As suas palavras eram cordiais, muito doces,
até nos piores momentos. Chegavam ao assassinato sem perderem a cortesia.
Administravam a morte com palavras afáveis. [...] Eram capazes de fazer
quaisquer promessas que quiséssemos ouvir para anestesiar a nossa desconfiança.
(...) Os Khmers Vermelhos eram delicados em quaisquer circunstâncias, mesmo antes
de nos abaterem como gado.” (...) “Matavam-se constantemente homens e mulheres
para fazer adubo. Enterravam-se os cadáveres em valas comuns que eram
onipresentes nos campos de cultivo, sobretudo nos de mandioca. Com freqüência,
ao arrancar os tubérculos de mandioca, desenterrava-se um crânio humano através
de cujas órbitas saíam as raízes da planta comestível.” (...) seja lícito ver
aqui, em paralelo com o canibalismo (dos quadros), o ponto culminante da
negação da humanidade dos “inimigos de classe”.
A selvageria do sistema reaparece no momento
supremo, o da execução. Para poupar as balas, mas também sem dúvida para
satisfazer o freqüente sadismo dos executores, o fuzilamento não é o mais
corrente: apenas 29% das vítimas, segundo o estudo de Sliwinski. Em
compensação, seriam contados 53% de crânios esmagados (com barras de ferro, com
cabos de enxada), 6% de enforcados e asfixiados (com saco plástico), 5% de
decapitados e de espancados até à morte. Confirmação da totalidade dos testemunhos:
somente 2% de assassinatos teriam ocorrido em público. Entre esses, um número
significativo de execuções “exemplares” de quadros caídos em desgraça,
utilizando métodos particularmente bárbaros, em que o fogo (purificador?)
parece desempenhar um papel relevante: enterramento até o peito numa vala cheia
de brasas; cremação das cabeças com petróleo. (págs. 727-729)
68.”Crianças numa prisão de distrito. O que
mais nos comovia era a sorte de 20 crianças, sobretudo filhos de pessoas
deportadas depois de 17 de abril de 1975. Essas crianças roubaram porque tinham
muita fome. Estavam presas não para serem punidas, mas para serem mortas de
uma forma particularmente selvagem:
— os guardas de prisão batiam-lhes ou
chutavam-nas até à morte;
— faziam delas brinquedos vivos; amarravam-nas
pelos pés, penduravam-nas no teto, balançavam-nas, e depois tentavam
estabilizá-las com chutes;
— perto da prisão havia um pântano; os
carrascos atiravam para lá os pequenos prisioneiros, empurravam-nos para o
fundo com os pés, e quando os desgraçados eram atacados por convulsões,
deixavam a cabeça emergir, para recomeçarem de imediato a mergulhá-los à força
na água.” (págs. 730-732)
69.”Uma exceção khmer? (...) O triunfalismo
não conhecia limites: “Estamos em vias de fazer uma revolução única. Conhece
algum país que ouse, como nós, suprimir o mercado e a moeda? Nós batemos de
longe os chineses, que nos admiram. Eles tentam imitar-nos, mas ainda não o
conseguiram. Seremos um bom modelo para o mundo inteiro — tal é o
discurso de um intelectual pertencente aos quadros do Partido que viajou pelo
estrangeiro. Mesmo depois de ter sido afastado do poder, Pol Pot continuou a
considerar que o 17 de abril de 1975 foi o maior acontecimento revolucionário
da História, “com exceção da Comuna de Paris, em 1871”. (págs. 734-735)
70.”durante uma dezena de anos, Haing Ngor ouviu os
soldados khmers vermelhos dizerem: “Agora, nada de livros capitalistas! Os
livros estrangeiros são instrumentos do Antigo Regime que traiu o país. Por
que é que você tem livros? Você é agente da CIA?” Convinha também queimar
diplomas, assim como bilhetes de identidade, e até álbuns de fotografias: a
revolução é o recomeço a partir do zero. (...) “Só o bebê recém-nascido não tem
mancha” garantia um slogan. A educação foi reduzida à sua expressão mais
simples: ou seja, nenhuma escola ou, na maior parte dos casos, alguns cursos de
leitura, de escrita e sobretudo de cânticos revolucionários, entre os 5 e os 9
anos, habitualmente não mais de uma hora diária; os próprios professores eram muitas
vezes fracamente alfabetizados. A única coisa que contava era o saber prático:
longe da inútil cultura livresca, “as nossas crianças das zonas rurais sempre
tiveram conhecimentos muito úteis. Sabem diferençar a vaca calma da nervosa.
Sabem agüentar-se sobre um búfalo nos dois sentidos. São os senhores do
rebanho. Praticamente, tornaram-se senhores da natureza. (...) Conhecem e
compreendem verdadeiramente esse tipo de saber está muito adaptado à realidade
da nação”.” (págs. 739-740)
71.”os soldados khmers vermelhos. São recrutados
aos 12 anos, por vezes menos (...) Os jovens recrutas perdiam todos os
contatos com a família, e geralmente com o povoado natal. (...) honrados pelo
poder, eles se achavam todo-poderosos (...) a motivação de muitos, confessada até
por alguns fugitivos, era “não precisar trabalhar e poder matar pessoas”. Os
que tinham menos de 15 anos eram os mais temíveis: “Eles eram recrutados muito
novos, e só lhes era ensinada a disciplina. Simplesmente obedecer às ordens,
sem necessidade de justificação [...] Não acreditavam nem na religião nem na
tradição, mas apenas nas ordens dos Khmers Vermelhos. Era por isso que matavam
o seu próprio povo, bebês inclusive, como se matam mosquitos.” (...)
Picq descreve a “formação” acelerada de um
contingente de crianças dos campos: “Explicaram-lhes que a primeira geração de
quadros tinha traído e que a segunda não era melhor do que a primeira. Por
isso, eles seriam chamados a substituí-la muito rapidamente “Foi entre essa
nova geração que apareceram as crianças-médicos. Elas eram seis meninas de 9 a
13 anos. Mal sabiam ler, mas o Partido confiou a cada uma delas uma caixa de
seringas. (...) “As nossas
crianças-médicos — eles nos diziam — são oriundas do campesinato.
Elas estão prontas a servir a sua classe. (...) mas ninguém contara com a
embriaguez que proporciona o saber dar uma injeção! Muito rapidamente, as
crianças-médicos mostraram-se de uma arrogância e de uma insolência sem
precedentes.”“ (págs. 740-741)
72.”O mundo novo”. “A nossa escola é o campo.
A terra é o nosso papel, o arado a nossa caneta: escreveremos com nosso
trabalho! Os certificados e os exames são inúteis; saibam trabalhar e saibam
abrir os canais: eis os novos diplomas de vocês! E, quanto aos médicos,
tampouco precisamos deles! Se alguém necessitar que lhe retirem os
intestinos, eu próprio me encarregarei disso!” Fez o gesto de eventrar alguém
com uma faca, para o caso de algum de nós não ter percebido a alusão.
“Como vocês vêem, é fácil, não é necessário ir à
escola para isso! Também não necessitamos de profissões capitalistas como os
engenheiros e os professores! Não precisamos de professores em escolas para nos
dizer o que é preciso fazer; eles são todos corruptos. (...) No entanto,
camaradas... há pessoas que recusam o trabalho e o sacrifício Há agitadores que
não possuem a boa mentalidade revolucionária... Esses, camaradas, são os nossos
inimigos! E alguns deles encontram-se aqui mesmo, esta noite!” A assistência
foi invadida por um sentimento de mal-estar que se traduziu em diversos
movimentos. O Khmer Vermelho prosseguia, olhando para cada rosto à sua frente.
“Essas pessoas não largam a velha maneira de
pensar capitalista! Podemos reconhecê-las: vejo entre nós quem ainda usa
óculos! E usam óculos por quê? Será que não podem ver-me se eu lhes der uma
bofetada?” Avançou bruscamente para nós, de mão erguida: “Ah! Eles fogem com a
cabeça. Portanto, podem ver-me; portanto, não têm necessidade de óculos! Usam
óculos para seguir a moda capitalista, julgando que isso os torna belos! Nós
não temos necessidade disso: aqueles que desejam ser belos são preguiçosos e
exploradores que sugam a energia do povo!”
Sucederam-se discursos e danças durante horas.
Finalmente, todos os quadros se alinharam gritando a uma só voz: “O-SANGUE-VINGA-O-SANGUE!”
Ao pronunciar a palavra “sangue”, batiam no peito com o punho; ao gritar “vinga”,
saudavam de braço estendido e punho cerrado. “O-SANGUE-VINGA-O-SANGUE!
O-SANGUE-VINGA-O-SANGUE!” Com expressões tensas, cheias de uma determinação
selvagem, gritavam os slogans ao ritmo das pancadas no peito, terminando essa
assustadora demonstração com um vibrante: “Longa vida à revolução cambojana!”
(pág. 743)
73.”quase todos os dirigentes khmers vermelhos
estudaram na França, e a maioria aderiu ao PCF, inclusive o futuro Pol Pot. Um
certo número das suas referências históricas provêm dessa formação: Suong Sikoeun,
adjunto de Ieng Sary, garante: “Fui muito influenciado pela Revolução Francesa,
e particularmente por Robespierre. Daí, foi um passo para me tornar comunista.
Robespierre é o meu herói. Robespierre e Pol Pot: os dois homens têm as mesmas
qualidades de determinação e de integridade.” (págs. 744-745)
74.”Em 1979, 42% das crianças eram órfãs, três
vezes mais de pai do que da mãe; 7% haviam perdido os dois progenitores. Em
1992, é entre os adolescentes que a situação de isolamento é mais dramática:
64% de órfãos. Uma parte dos males sociais gravíssimos que ainda hoje fazem
enormes estragos na sociedade cam (...)
provém desta desarticulação: criminalidade em massa e freqüentemente violenta
(as armas de fogo são encontradas por todos os lados), corrupção generalizada,
desrespeito e falta de solidariedade, ausência, em todos os níveis, do menor
sentido do interesse geral. As centenas de milhares de refugiados no estrangeiro
(150 mil só nos Estados Unidos) continuam, também eles, a sofrer o que viveram:
pesadelos freqüentes, a mais alta taxa de depressões nervosas de todos os
oriundos da Indochina, uma grande solidão para as mulheres que chegaram
sozinhas, em número muito maior do que os homens da sua geração, assassinados.”
(págs.756-757)
Pascal Fontaine, Yves Santamaria e Sylvain Boulouque
A América Latina e a experiência comunista, Pascal Fontaine
Cuba. O interminável totalitarismo tropical
Nicarágua o fracasso de um projeto totalitário
Peru: a “longa marcha” sangrenta do Sendero Luminoso
Afrocomunismos: Etiópia, Angola, Moçambique, Yves Santamaria
O império vermelho: a Etiópia
Violências lusófonas: Angola, Moçambique
O comunismo no Afeganistão, Sylvain Boulouque
Resumo: Esta parte mistura
um porção de “experiências socialistas”, de modo muito epidêrmico. O destaque
vai para Cuba.. O sargento taquígrafo Fulgencio Batista, governou se apoiando
também no Partido Comunista cubano. Fidel foi preso em 1953 e salvou a vida
pela intervenção do arcebispo de Santago de Cuba, Mons. Perez Serantes. “A
vitória fácil dos guerrilheiros (...) Na realidade a guerrilha só havia travado
combates pouco significativos, e Batista foi vencido antes de mais nada, porque
perdeu o controle de Havana em face do terrorismo urbano. O embargo americano
de armas jogou igualmente em seu desfavor.” (pág. 770). Após a queda de
Batista, formou-se um governo de coalizão. Fidel Castro ficou com a chefia do
exército. Mas, logo, os “democratas” abandonara, o governo e o país teve a
primeira oleada de fugas (50.000 pessoas aproximadamente).
75. “Em junho de 1959, cristalizava-se a oposição
entre liberais e radicais acerca da reforma agrária lançada em 17 de maio.
(...) Castro escolheu uma política mais radical, sob a égide do Instituto
Nacional de Reforma Agrária (INRA), confiado a marxista ortodoxos e do qual ele
foi o primeiro presidente. (...) Em junho de 1959, e para acelerar a reforma
agrária, ordenou ao exército que tomasse o controle de cem latifúndios na
província de Camagüey.” (pág. 771).
76.”Em maio de 1961, todos os colégios religiosos
foram fechados, e os respectivos edifícios, confiscados, inclusive o colégio
jesuíta de Belen, no qual Fidel fizera os seus estudos. Envergando o seu
uniforme, o Líder Máximo declarou: “Que os padres falangistas se preparem para
fazer as malas!” (...) em 17 de setembro de 1961, 131 padres diocesanos e
religiosos foram expulsos de Cuba. Para sobreviver, a Igreja teve de votar-se
para si mesma.” (pág. 773)
77.”Apelidado de “Gestapo Vermelha” pelos cubanos,
o Departamento de Segurança do Estado (DSE) (...) detém o domínio sobre o
sistema carcerário.
Inspirado no modelo soviético, o DSE foi
dirigido desde o início por estrangeiros. O DSE sustenta a sobrevivência do
sistema castrista utilizando para fins econômicos os milhares de detidos
condenados a trabalhos forçados. (...) A Dirección Especial del Ministerio del
Interior, ou DEM, recruta chivatos (informantes) aos milhares, a fim de
controlar a população. A DEM trabalha segundo três eixos: o primeiro, chamado “informação”,
consiste em estabelecer um processo sobre cada cubano; o segundo, “o estado da
opinião”, sonda a opinião dos habitantes; o terceiro, designado por “linha
ideológica”, tem por missão vigiar as igrejas e as congregações através da
infiltração de agentes.
Desde 1967, o Minit dispõe das suas próprias
tropas de intervenção: as Fuerzas Especiales. Em 1995, elas contavam 50 mil
homens, Essas tropas de choque colaboram estreitamente com a Dirección 5 e
com a Dirección de Seguridad Personal (serviço de proteção pessoal). Guarda
pretoriana de Castro, (...)
A Dirección 5 é “especializada” na
eliminação de opositores. (...) Elias de la Torriente foi abatido em Miami, e
Aldo Vera, um dos chefes da guerrilha urbana contra Batista, foi assassinado em
Porto Rico. No exílio em Miami, Hubert Matos é obrigado a fazer-se proteger por
vários guardas armados. As detenções e os interrogatórios conduzidos pela Dirección
5 realizam-se no centro de detenção de Villa Marista, em Havana, um antigo
edifício da congregação dos Irmãos Maristas. Ali, num universo fechado, ao
abrigo dos olhares, num extremo isolamento para o detido, praticam-se torturas
mais psíquicas do que físicas.” (pág. 777-778)
78.”É possível fazer um balanço da repressão dos
anos 60: entre sete e dez mil pessoas foram fuziladas, e avaliava-se em 30 mil
o número de detidos políticos. (...)
A Unidade Militar de Apoio à Produção (UMAP),
que funcionou entre 1964 e 1967, foi o primeiro ensaio de desenvolvimento de
trabalho penitenciário. Operacionais em novembro de 1965, os campos da UMAP
eram verdadeiros campos de concentração, para onde eram desordenadamente
atirados religiosos (católicos, entre os quais o atual arcebispo de Havana,
Mons. Jaime Ortega, protestantes, testemunhas de Jeová), proxenetas,
homossexuais e quaisquer indivíduos considerados “potencialmente perigosos para
a sociedade”. (...) As “pessoas socialmente desviantes” eram submetidas a uma
disciplina militar, que se transformou num regime de maus-tratos, de
subalimentação e de isolamento. Para escapar a esse inferno, havia detidos que
se auto-mutilavam. Outros saíram psiquicamente destruídos pelo encarceramento.
(...) Os protestos internacionais provocaram o encerramento dos campos da UMAP
após dois anos de existência.
Em 1964, foi implementado um programa de
trabalho forçado na ilha dos Pinheiros: o plano “Camilo-Cienfuegos”. (...) os
prisioneiros eram destinados aos trabalhos agrícolas ou à extração nas
pedreiras, sobretudo de mármore. (...) os detidos trabalhavam quase nus
vestindo um simples calção. À guisa de punição, os recalcitrantes eram
obrigados a cortar erva com os dentes, e outros foram jogados dentro de fossas
de excrementos durante várias horas.
A violência do regime penitenciário atingiu
tanto os presos políticos quanto os de direito comum. (...) À tortura física
juntava-se a tortura psíquica, freqüentemente com acompanhamento médico; os
guardas utilizavam o pentotal e outras drogas, a fim de manter os presos
acordados. No hospital de Mazzora, os eletrochoques eram usados com fins
repressivos, sem qualquer restrição. Os guardas empregavam cães de guarda,
procediam a simulações de execução; as 9 celas disciplinares não tinham água
nem eletricidade; o detido que se pretendia despersonalizar era mantido em
completo isolamento.
(...) os
familiares do detido pagam socialmente o empenhamento político do seu parente.
Os filhos não têm acesso à universidade, e os cônjuges perdem o emprego.”
(págs. 778-779)
79.”A prisão mais tristemente célebre foi, durante
muito tempo, a de Cabaña, (...) A “especialidade” de Cabaña eram as masmorras
de reduzidas dimensões chamadas ratoneras (buracos de rato). Ela foi desativada
em 1985. Mas as execuções prosseguem em Columbio, em Boniato, prisão de alta
segurança onde reina uma violência sem limites e onde dezenas de políticos são
mortos de fome. Para não serem violentados pelos presos de direito comum,
alguns se lambuzam com excrementos. Boniato continua a ser ainda hoje a prisão
dos condenados à morte, sejam políticos ou de direito comum. É célebre pelas
suas celas de rede de arame, as tapiadas. Por falta de assistência
médica, dezenas de prisioneiros encontraram a morte nessas celas. (...)
Algumas prisões voltaram a pôr em vigor as
jaulas de ferro. No fim dos anos 60, na prisão de Tres Macios del Oriente, as
gavetas (celas), destinadas originalmente aos presos de direito comum, foram
ocupadas pelos presos políticos. Tratava-se de uma cela de 1 metro de largura
por 1,8 metro de altura, e com um comprimento de uma dezena de metros. Nesse
universo fechado, em que a promiscuidade é dificilmente suportável, sem água
nem higiene, os prisioneiros permaneciam semanas, às vezes vários meses. (...)
No universo carcerário de Cuba, a situação das
mulheres é especialmente dramática, uma vez que elas são entregues sem defesa
ao sadismo dos guardas.” (págs. 780-781)
80.”Situado próximo de Santiago de Las Vegas, o
campo Arco-Iris está concebido para receber 1.500 adolescentes. Não é o único:
existe também o de Nueva Vida, no sudeste da ilha. Na zona de Paios, situa-se o
Capitiolo, campo de internamento especial reservado a crianças com cerca de 10
anos. Os adolescentes cortam cana ou fazem trabalhos de artesanato, tais como
as crianças enviadas para estágio em Cuba pelo MPLA de Angola ou pelo regime
etíope nos anos 80.” (pág. 782)
81.”Os condenados a penas leves de três a sete anos
de prisão têm residência fixa em frentes ou em granjas. A granja é uma inovação
castrista. É constituída por acampamentos confiados aos guardas do Ministério
do Interior, os quais têm o direito de disparar sobre qualquer pessoa que tente
fugir. Rodeada por várias redes de arame farpado e torres de vigia,
assemelha-se ao campo de trabalho corretivo soviético. Algumas granjas podiam
comportar de 500 a 700 prisioneiros. As condições de detenção são horríveis:
trabalho de 12 a 15 horas por dia, com guardas que não hesitam em perfurar os
detidos com as pontas das baionetas para acelerar o seu ritmo.
Quanto à “frente aberta”, trata-se de um
canteiro de trabalho onde o prisioneiro tem residência fixa, sendo geralmente
posto sob comando militar. (...) Os detidos nas granjas — políticos ou de
direito comum — produzem elementos pré-fabricados para uso dos presos das
frentes abertas. (...) Em 1974, o valor dos trabalhos realizados representava
mais de 348 milhões de dólares. Todos os organismos do Estado recorrem aos
prisioneiros.” (págs. 783-784)
82.”Os cubanos foram profundamente abalados pelo
êxodo em massa do porto de Mariel, em 1980. Esse efeito foi agravado pela ação
dos CDRs, que organizaram atos de repudio destinados a marginalizar socialmente
e a quebrar o moral dos opositores — doravante designados pelo nome de gusanos
(vermes) — e das suas famílias. Agrupada diante da casa do opositor,
uma multidão rancorosa bombardeia com pedras e injúrias os seus moradores.
Slogans castristas e insultos são inscritos nas paredes. A polícia só intervém
quando “a ação revolucionária de massas” se torna fisicamente perigosa para a
vítima.
Essa prática de quase-linchamento alimenta no
interior da população sentimentos de ódio recíproco numa ilha em que todos são
conhecidos por todos. Os atos de repúdio quebram os laços entre vizinhos,
alteram o tecido social para melhor impor o todo-poderoso Estado socialista. A
vítima — vaiada aos gritos de “Afuera, gusano!” (“Fora, verme!”), “Agente
de Ia CIA!” e, claro, “Viva Fidel!'' — não tem qualquer hipótese de
defender-se na justiça. (...) Mais tarde, perante o cansaço dos cubanos em
relação a essas orgias de ódio social, as autoridades começaram a utilizar
pessoas provenientes de bairros diferentes dos das vítimas.” (pág. 785)
83.”Em 1961, os primeiros a deixar Cuba em grande
quantidade foram os pescadores. O balsero, equivalente cubano do boat-people
do Sudeste da Ásia, (...) Esse fenômeno (...) foi levado ao conhecimento do
mundo inteiro com a crise de abril de 1980. Milhares de cubanos cercaram a
embaixada do Peru em Havana, exigindo vistos de saída para fugir a um cotidiano
insuportável. No fim de várias semanas, as autoridades permitiram que 125 mil
pessoas — numa população que, na época, era de 10 milhões de
habitantes — abandonassem o país embarcando no porto de Mariel. Castro
aproveitou o ensejo para “libertar” os doentes mentais e os pequenos
delinqüentes Esse êxodo em massa foi uma manifestação do fracasso do regime,
pois os Marielitos, como foram chamados, eram oriundos das camadas mais
humildes da sociedade, às quais o regime dizia dar uma grande atenção. Brancos,
mulatos e negros, freqüentemente jovens, fugiam do socialismo cubano. Após o
episódio de Mariel, numerosos cubanos inscreveram-se em listas para conseguir o
direito de abandonar o seu país. Dezessete anos mais tarde, eles continuam à espera
dessa autorização.
No decorrer do verão de 1994, (...) Castro
autorizou novo êxodo de 25 mil pessoas. Posteriormente, as partidas não
cessaram, e as bases americanas de Guantánamo e do Panamá estão saturadas de
exilados voluntários. Castro tentou igualmente travar essas fugas em
jangadas, enviando helicópteros para bombardear as frágeis embarcações com
sacos de areia. Cerca de sete mil pessoas pereceram no mar durante o verão de
1994. Ao todo, estima-se que um terço dos balseros morreu durante a fuga. Em 30
anos, teriam sido entre 25 mil e 35 mil os cubanos que tentaram a fuga pelo
mar. No total, os diversos êxodos fazem com que Cuba tenha atualmente 20% dos
seus cidadãos no exílio. Numa população global de 11 milhões de habitantes,
perto de 2 milhões de cubanos vivem fora da ilha. O exílio desarticulou as famílias,
e são incontáveis as que estão dispersas entre Havana, Miami, Espanha ou Porto
Rico...” (págs. 786-787)
84.”Em 1978, havia entre 15.000 e 20.000
prisioneiros de opinião. (...) Em 1986, estimava-se de 12.000 a 15.000 o número
de prisioneiros políticos encarcerados em 50 prisões “regionais” distribuídas
por toda a ilha. A isto juntam-se hoje múltiplas frentes abertas reforçadas
por brigadas de 50, 100 e mesmo 200 prisioneiros. (...) na primavera de 1997,
Cuba conheceu uma nova onda de prisões. (...)
Desde 1959, mais de cem mil cubanos conheceram
os campos, as prisões ou as frentes abertas. Entre 15.000 e 17.000 pessoas
foram fuziladas.” (pág. 788)
Resumo: O livro faz uma muito parca referência ao apoio
de Fidel à revolução na África, e não diz nada sobre a promoção da subversão na
América Latina e as vítimas ocasionadas. O capítulo referente a Nicarágua,
noticia a história da Revolução sandinista, descreve rapidamente as tentativas
de reforma agrária e os desordens causados. Por fim se detém algo na guerra
civil contra os anti-sandinistas que teria deixado entre 45.000 e 50.000
mortos. A parte do Perú é brevíssima. Nada, mas absolutamente nada sobre os
movimentos guerrilheiros mais célebres da América Latina, como os de Argentina,
Uruguai ou Brasil. E, por sobre tudo brada pela ausência o comunismo chileno.
85. “Em 1971, na IV Conferência do Bandera Roja, uma
outra cisão originou (...) o Sendero Luminoso. O nome foi tomado de empréstimo
a José Carlos Mariatégui, que escrevera: “O marxismo-Lêninismo abrirá o trilho
(sendero) luminoso da revolução”. Adulado pelos militantes, Guzman é chamado “a
quarta espada do marxismo” (depois de Marx, Lênin e Mao). Vargas Llosa analisa
desse modo o seu “projeto” revolucionário: “Para ele, o Peru descrito por José
Carlos Mariatégui nos anos 20 é essencialmente semelhante à realidade chinesa
analisada por Mao nessa época — uma 'sociedade semi-feudal e
semi-colonial' —, e ele conseguirá a sua libertação através de uma
estratégia semelhante à da Revolução Chinesa: uma guerra popular prolongada
que, utilizando os campos como coluna vertebral, realizará o 'assalto' às
cidades. [...] O modelo de socialismo que reivindica são a Rússia de Stalin, a
Revolução Cultural do 'bando dos quatro' e o regime de Pol Pot no Camboja.”
(pág. 801)
86.”Guzman poderia ter predito: “O triunfo da
Revolução custará um milhão de mortos!” — o Peru contava então 19 milhões
de habitantes. (...) Em janeiro de 1982, executaram dois professores diante dos
respectivos alunos. Alguns meses mais tarde, 67 “traidores” foram abatidos
publicamente no decorrer de um “julgamento popular”. No início, a execução de
latifundiários e de outros proprietários de terras não chocara os camponeses,
(...) em 1983, o Sendero começou a colaborar com os narcotraficantes em
Huánuco.” (pág. 803)
“Segundo algumas fontes, o Sendero Luminoso é
responsável pela morte de 25.000 a 30.000 pessoas. As crianças dos campos
pagaram um pesado tributo ao terrorismo de guerra civil do Sendero: entre 1980
e 1991, os atentados mataram 1.000 crianças e mutilaram cerca de 31.000. 0
esfacelamento das famílias nas zonas de guerra também deixou cerca de 50.000
crianças entregues a si próprias, entre as quais numerosos órfãos.” (pág. 806)
Resumo: Seguem
capítulos referentes à África. O responsável por esta parte sublinha a falta de
densidade da casuística dado primitivismo das condições. A própria Rússia
reconheceu a poucos movimentos como verdadeiramente comunistas. Entretanto, as
desgraças que o comunismo provocou não diferem essencialmente: tentativas
desastrosas de reforma agrária, conflitos civis logo transformados em guerras
de caráter étnico, e descomposição da pouca estrutura econômica estabelecida
durante o colonialismo ocidental. De toda África, o caso mais
caracteristicamente comunista, é o da Etiópia, com a derrocada do imperador
Haile Salassié e a implantação de uma ditadura de tipo soviético delirante. O
coronel Mengistu Hailé Mariam (na realidade bastardo da aristocracia imperial)
instaurou o comunismo com um golpe militar. Apelou para conselheiros cubanos e
da Alemanha Oriental, nacionalizou os bancos, aboliu a propriedade das terras e
só deixou um só imóvel por família para habitação. A riqueza agrícola foi
liquidada. Milícias urbanas funcionavam como as secções da Comuna de Paris. A
polícia expunha os cadáveres dos opositores nas ruas, onde eram alimento das
hienas. Las províncias rebeldes foram bombardeadas, e, por fim, objeto de uma
guerra total. O regime ordenou a transferência das populações insubmissas. 2,5
milhões teriam sofrido isso, com espantosa taxa de mortalidade nos campos de
concentração. Uma campanha mundial atraiu dinheiro ocidental para socorrer as
vítimas. Os recursos foram gastos pela ditadura marxista em armas e objetos
suntuários.
De Angola e Moçambique, o responsável ressalta guerras civis, reformas
agrárias e coletivização dos campos, participação de conselheiros soviéticos e
cubanos, etc. O fanatismo marxista fazia com que os líderes falassem em nome da
classe operária, quando na realidade essa não existe nesses países.
O capítulo sobre o Afeganistão é extenso. Detalha as revoluções, a
intervenção russa, as brutalidades do Exército Vermelho contra a população,
campos de concentração e de tortura, fugas em massa, estratégia de terra
queimada, 700.000 civis, especialmente crianças, mutilados por minas
anti-pessoais, 30.000 crianças seqüestradas e enviadas à URSS, etc.
87.”A amplitude do desastre é ainda hoje
dificilmente mensurável. Numa população total de cerca de 16 milhões, mais de
cinco milhões fugiram para o Paquistão e para o Irã, onde vivem em condições
miseráveis. O número de mortos é muito difícil de se estabelecer: a guerra
teria feito, conforme os testemunhos, entre um milhão e meio e dois milhões de
vítimas, 90% das quais sendo civis. Teria havido entre dois e quatro milhões de
feridos.” (pág. 860)
Stéphane Courtois
88. “Fica, na verdade, a questão fundamental do “Por
quê?”. Por que foi que o comunismo moderno, surgido em 1917, se transformou
quase imediatamente numa ditadura sangrenta e depois num regime criminoso?
Os seus objetivos só podiam ser atingidos através da violência mais extrema?
(...) A URSS de Lênin e de Stalin foi a matriz do comunismo moderno. O fato de
essa matriz ter adquirido, repentinamente, uma dimensão criminosa é ainda mais
surpreendente, se considerarmos que esse fato a situa na contramão da evolução
do movimento socialista.” (pág. 864)
89. “Ao longo de todo o século XIX, a reflexão sobre
a violência revolucionária foi dominada pela experiência fundadora da Revolução
Francesa, a qual conheceu, em 1793-1794, um episódio de violência intensa que
adotou três formas principais. A mais selvagem surgiu com as “matanças de
setembro”, durante as quais mais de mil pessoas foram assassinadas em Paris por
amotinados, sem que tivesse havido qualquer intervenção governamental ou de
qualquer partido. A mais conhecida baseava-se na instituição do Tribunal
Revolucionário, dos Comitês de Vigilância (de delação) e da guilhotina, que
enviaram para a morte 2.625 pessoas em Paris e 16.600 em toda a França. Oculto
durante muito tempo, o terror praticado pelas “colunas infernais” da República
tinha por missão liquidar a Vendéia, fazendo dezenas de milhares de mortos
entre uma população desarmada. No entanto, esses meses de terror não foram mais
do que um episódio sangrento, que se inscreve como um momento numa trajetória
de mais longa duração, simbolizada pela criação de uma república democrática,
com a sua Constituição, a sua Assembléia e os seus debates políticos. Quando a
Convenção se afirmou, Robespierre foi derrubado, e o Terror acabou.
François Furet (...) : “O Terror é o governo do
medo, que Robespierre teoriza como governo da virtude. Criado com a finalidade
de exterminar a aristocracia, o Terror torna-se um meio de submeter os malvados
e combater o crime. É, por isso mesmo, um aliado da Revolução, inseparável
dessa porque só ele permite a construção futura de uma República de cidadãos.
[...] Se não é ainda possível a existência de uma República de cidadãos livres,
é porque os homens, pervertidos pela história passada, são maus; através do
Terror, a Revolução, essa história inédita, inteiramente nova, criará um homem
novo.”
Sob certos aspectos, o Terror prefigurava a
atitude dos bolcheviques (...) Robespierre colocou incontestavelmente a
primeira pedra no caminho que mais tarde havia de conduzir Lênin ao terror.
Pois foi ele próprio quem afirmou, na Convenção, durante a votação das leis do
Prairial: “Para punir os inimigos da Pátria, é suficiente saber a sua
identidade. Não se trata de castigá-los, mas de destruí-los.” (págs. 863-864)
90. “Embora ligados à tradição européia do marxismo,
os bolcheviques mergulhavam também as suas raízes no terreno do movimento
revolucionário russo. Ao longo do século XIX, esse último manteve uma estreita
afinidade com uma violência minoritária, cuja primeira expressão radical se
deve ao famoso Serguei Netchaiev, (...) Em 1869, Netchaiev redigiu um Catecismo
do Revolucionário, onde se definia: “Um revolucionário é um homem
antecipadamente perdido; não tem interesses particulares, negócios privados,
sentimentos, ligações pessoais, bens, e nem sequer um nome. Tudo nele é
totalmente absorvido por um único interesse que exclui todos os outros, por um
único pensamento, por uma paixão — a revolução. No seu íntimo, não apenas
por palavras, mas também por atos, rompeu todos os laços com a ordem pública,
com todo o mundo civilizado, com todas as leis, conveniências, convenções
sociais e regras morais do mundo em que vive. O revolucionário é um inimigo
implacável desse mundo e só continuará a viver para mais seguramente o
destruir.”
Em seguida, Netchaiev especificava os seus
objetivos: “O revolucionário não se integra no mundo político e social, no
mundo dito culto, e só vive ali com a esperança da sua mais completa e rápida
destruição. Nunca será um revolucionário, se mostrar compaixão, seja pelo que
for, nesse mundo.” E, imediatamente, visiona a ação: “Toda essa sociedade
imunda deve ser dividida em várias categorias. A primeira compreende os
condenados à morte imediata. [...] A segunda categoria deverá abranger os
indivíduos aos quais a vida é concedida provisoriamente, a fim de que, através
dos seus atos monstruosos, incitem o povo à insurreição inelutável.” (...)
O ódio de Lênin por esse regime [czarista]
estava profundamente enraizado, e foi aliás Lênin pessoalmente quem, à revelia
dos membros do Politburo, decidiu e organizou o assassinato da família imperial
dos Romanov, em 1918.
Na opinião de Martin Malia, esse (...) “regresso
imaginário à Revolução Francesa, marcou a chegada à cena mundial do terrorismo
como tática política sistematizada (muito diferente do terrorismo do atentado
solitário). E foi assim que a estratégia populista de insurreição vinda das
bases (das massas), conjugada com o terror vindo de cima (das elites que as
guiavam), conduziu a Rússia a uma legitimação da violência política que
ultrapassava a legitimação inicial dos movimentos revolucionários da Europa
Ocidental, de 1789 a 1871”. (págs. 866-867)
91. “Em nome da verdade da mensagem, os bolcheviques
passaram da violência simbólica para a violência real, e instalaram um poder
absoluto e arbitrário, a que chamaram “ditadura do proletariado”, retomando uma
expressão que Marx havia utilizado, por acaso, numa carta.” (págs. 867-877)
92. “Contrariamente ao Terror da Revolução Francesa,
que, com exceção da Vendéia, só atingiu uma pequena faixa da população, o
terror de Lênin visava todas as formações políticas e todas as camadas da
população: nobres, grandes burgueses, militares, policiais, mas também
democratas-constitucionais mencheviques, socialistas-revolucionários, e até o
povo em geral, camponeses e operários.” (pág. 873)
93. “Trotski (...) : “É perfeitamente evidente que,
se definirmos como objetivo a abolição da propriedade privada individual dos
meios de produção, não haverá outra maneira de consegui-lo senão através da
concentração de todos os poderes do Estado nas mãos do proletariado, a criação
de um regime de exceção durante um período transitório. [...] A ditadura é
indispensável (...) nenhum acordo é possível; só a força pode decidir. Quem
quer atingir um fim não pode repudiar os meios.” (pág. 875)
94. “Apanhado entre o desejo de aplicar a sua
doutrina e a necessidade de conservar o poder, Lênin imaginou o mito da
revolução bolchevique mundial. Em novembro de 1917, ele quis acreditar que o
incêndio revolucionário iria devastar todos os países implicados na guerra, e
sobretudo a Alemanha. Ora, não houve qualquer revolução mundial e, após a
derrota alemã, em novembro de 1918, instalou-se uma nova Europa, pouco
preocupada com as faíscas revolucionárias rapidamente extintas na Hungria, na
Baviera e até em Berlim. (...) Mais do que nunca, o terror esteve na ordem do
dia, o que permitia conservar o poder, começar a remodelar a sociedade à imagem
da teoria e impor silêncio a todos aqueles que, pelos seus discursos, pela sua
prática ou somente pela sua existência — social, política,
intelectual — denunciavam todos os dias a vacuidade da teoria. A utopia no
poder torna-se uma utopia mortífera.
Essa dupla defasagem entre a teoria marxista e a
teoria Lêninista, e depois entre a teoria Lêninista e a realidade, deu origem
ao primeiro debate fundamental sobre o significado da revolução russa e
bolchevique. Em agosto de 1918, Kautsky pronunciou uma sentença sem apelo: “Em
caso algum é permitido supor que na Europa Ocidental se repetirão os
acontecimentos da grande Revolução Francesa. Se a Rússia atual apresenta tanta
similitude com a França de 1793, isso é a prova de que se encontra próxima da
fase da Revolução Francesa. [...] O que lá se passa não é a primeira revolução
socialista, mas sim a última revolução burguesa.”“ (pág. 875)
95. “É a elevação da ideologia e da política à
condição de Verdade absoluta, porque “científica”, que fundamenta a dimensão “totalitária”
do comunismo. É ela que comanda o partido único. É ainda ela que justifica o
Terror.” (pág. 876)
96. “Kautsky (...) : 'Na verdade, o nosso objetivo
último não é o socialismo, mas sim abolir 'todas as formas de exploração e de
opressão, quer sejam dirigidas contra uma classe, um partido, um sexo ou uma
raça'. [...] Se conseguissem demonstrar-nos que estamos errados não acreditando
que a libertação do proletariado e da humanidade em geral pode tornar-se uma
realidade unicamente, ou mais comodamente, com base na propriedade privada dos
meios de produção, deveríamos então lançar o socialismo janela afora, sem com
isso renunciarmos ao nosso objetivo final, e nesse caso deveríamos até fazê-lo
precisamente no interesse desse mesmo objetivo final.'“ (pág. 887)
97. “Em 1919, Trotski (...) concluía: “A revolução
violenta tornou-se uma necessidade na exata medida em que as exigências
imediatas da História não podem ser satisfeitas pelo aparelho da democracia parlamentar.”
(...) Doze anos mais tarde (...) Aragon disse-o em verso: 'Os olhos azuis da
Revolução brilham com uma crueldade necessária'.” (págs. 886-887)
98. “Gorki levará até as últimas conseqüências essa
posição, promovendo a criação do Instituto de Medicina Experimental da URSS. No
início de 1933, escreveu: “Está muito breve o tempo em que a ciência vai
perguntar aos seres ditos normais: querem que todas as doenças, as incapacidades,
as imperfeições, a senilidade e a morte prematura do organismo sejam minuciosa
e aprofundadamente estudadas? Esse estudo não pode ser feito com experiências
em cães, em coelhos, em cobaias. A experimentação com o próprio homem é
indispensável; é imprescindível estudar nele próprio o funcionamento do seu
organismo, os processos de alimentação intra-celular, a hematopoese, a química
dos neurônios e, mais geralmente, todos os processos orgânicos. Para isso,
serão necessárias centenas de unidades humanas para prestar um verdadeiro
serviço à humanidade, o que será com toda a certeza mais importante e mais útil
do que o extermínio de dezenas de milhões de seres saudáveis para conforto de
uma classe miserável, física e moralmente degenerada, de predadores e de
parasitas.” (...)
Ora, existe no comunismo um eugenismo
sócio-político, um darwinismo social. (...) A partir do momento em que se
decreta, em nome de uma ciência — ideológica e político-histórica como o
marxismo-Lêninismo —, que a burguesia representa uma etapa ultrapassada da
evolução da humanidade, justifica-se a sua liquidação enquanto classe e, logo a
seguir, a liquidação dos indivíduos que a constituem ou que são supostos de
pertencer-lhe.” (págs. 888-890)
99. “Considera-se até freqüentemente que existe uma
diferença radical entre o nazismo e o comunismo baseada no fato de o projeto
nazista ser particularizante — estritamente nacionalista e racial —,
enquanto o projeto Lêninista é universalista. Nada mais falso: na teoria e na
prática, Lênin e os seus seguidores excluíram claramente da humanidade o
capitalismo, a burguesia, os contra-revolucionários, etc. (...) fizeram deles
inimigos absolutos.” (pág. 891)
100. “O conjunto dos processos de terror que acabamos
de invocar foi, é certo, iniciado na URSS por Lênin e Stalin, mas contém um
determinado número de elementos invariáveis que se encontram, com diferentes
graus de intensidade, em todos os regimes que se reclamam do marxismo-Lêninismo.
Cada país ou partido comunista teve a sua história específica, as suas
características, locais e regionais, os seus casos mais ou menos patológicos,
mas esses inscreveram-se sempre na matriz elaborada em Moscou em novembro de
1917 e que, por esse fato, impôs uma espécie de código genético.” (pág. 892)
101. “Os “Lyssenko” megalômanos não teriam já tentado
criar, além de outras espécies de milho ou de tomate, uma nova espécie de
homem?
Essa mentalidade cientificista do fim do século
XIX, contemporânea do triunfo da medicina, inspirou Vassili Grossman a fazer essa
observação sobre os chefes bolcheviques: “Os homens dessa têmpera comportam-se
como os cirurgiões numa clínica. (...) O bisturi é o grande teórico, o líder
filosófico do século XX.” A idéia é levada ao extremo no caso de Pol Pot, que,
com um terrível golpe de bisturi, amputa a parte “gangrenada” do corpo social
— “o povo novo” e conserva a parte “sã” — “o povo antigo”. (...) Já
em 1870, Piotr Tkatchev, revolucionário russo e digno êmulo de Netchaiev,
propôs o extermínio de todos os russos com mais de 25 anos, considerados
incapazes de conceber a idéia revolucionária.” (pág. 892)
102. “Gorki, no seu texto de homenagem a Lênin, em
1924: “Lênin (...) uma vez, porém, disse-me, enquanto acariciava umas crianças:
'A vida deles será melhor do que a nossa; muito do que nós sofremos lhes será
poupado. A sua vi a será menos cruel'. Com o olhar perdido na lonjura,
acrescentou, sonhador: 'Mesmo assim, não os invejo. A nossa geração concretizou
uma tarefa espantosa pela sua importância histórica. A crueldade da nossa vida,
imposta pelas circunstâncias, será compreendida e perdoada. Tudo será
compreendido, tudo!”
Sim, tudo começa agora a ser compreendido, mas
não no sentido em que o entendia Vladimir Ilitch Ulianov. Que resta hoje dessa “tarefa
espantosa pela sua importância histórica”? Não uma ilusória “construção do
socialismo”, mas uma imensa tragédia que continua a pesar sobre a vida de
centenas de milhões de pessoas e que irá marcar a entrada no terceiro milênio.”
(pág. 895)
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