Estádio Luzhniki de Moscou onde a Copa 2018 começou e terminou. |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Na Sibéria, muitos russos nem souberam que na Rússia se jogou uma Copa do Mundo, reportou Jamil Chade, enviado especial de “O Estado de S.Paulo”, desde Zhunmurino, República da Buriácia.
Essa república beira a fronteira com a Mongólia. Lá o jornalista colheu respostas incertas, fruto da ausência de informações, do que se passa na Rússia.
Ironicamente mal sabia da Copa até um monge budista tido como agoireiro que prevê o futuro, cura doenças e prediz a chuva.
Em Buriácia até esse vidente desconhecia a existência da Copa do Mundo. “Não conheço”, lamentou.
Menos pretensiosa, a produtora de leite Lyubila Tserenyona dizia que “hoje nós jogamos contra a Argentina ou algo assim...”.
A seleção nacional russa não lhe dizia muita coisa. “Sou do povo buriato. Não sou russa. Mas vivemos na Rússia e vamos torcer pela Rússia na Copa”, explicou. Ao saber que o jornalista era do Brasil, ela sorriu dizendo: “eu adorava o Brasil nos anos 90 com Maradona e Pelé”.
A República da Buriácia fica a mais de 5,1 mil quilômetros de Moscou, na Sibéria Oriental onde as temperaturas podem chegar a 30 graus negativos durante semanas.
Casas históricas de Arkangelsk demolidas para Putin não ver. |
Nenhuma referência era visível no aeroporto ou nas estradas, a população não tinha sequer uma camisa da seleção, e os heróis esportivos são os locais do hóquei sobre gelo.
“Esses jogadores são da Rússia europeia. Nós somos da Rússia asiática”, explicava um estudante em um dos poucos bares de Irkutsk que mostrava a partida contra o Uruguai.
Baikalsk, 14 mil habitantes, na província de Irkutsk, é uma das 142 cidades na Rússia que estão a ponto de desaparecer.
A única fábrica, feita em 1966, é do tempo da União Soviética. O Estado é o único empregador e a fábrica se inseria no complexo militar soviético.
Mas a “nova-Rússia” não soube desestatizar. Putin tem outros objetivos em mente e o dinheiro para modernizar essas mais de cem cidades à beira do colapso foi desviado para promover a imagem de seu regime.
O Kremlin gastou US$ 50 bilhões em Sochi para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 e, oficialmente, outros US$ 11 bilhões na Copa, número esse a ser revisto para muito mais.
Dezenas de cidades colapsaram e o destino de dezenas ou centenas de milhares de seres humanos foi sacrificado em aras da guerra psicológica putinista.
Baikalsk: fábrica abandonada em cidade a ponto de sucumbir |
Ludmilla, vendedora de legumes contou que seu marido que ficou desempregado passou a beber e a violentá-la, até se separarem e ele morrer vítima do alcoolismo.
Obviamente, preocupada em sobreviver, Ludmilla nem sabia que a Rússia jogava esse dia.
E Svetlana Nikolaivna, vendedora de peixes, também de Baikalsk, acenava para a realidade, que é patética: “o que muda na minha vida se a Rússia ganhar? A juventude toda já deixou a cidade. Se os velhos não trabalharem, quem vai faze-lo?”
O verdadeiro rosto da Rússia profunda, longe de Moscou e São Petersburgo está a anos luz da imagem que o presidente Vladimir Putin quis passar ao mundo na Copa, observa o jornal.
A Rússia supostamente soberana, autoconfiante, moderna e sofisticada é de fato uma miragem. A realidade é que o país afundou ainda mais baixo que no tempo da miserável URSS comunista.
Nas cidades da Sibéria, como as da Irkutsk, 25% da população vive hoje abaixo da linha da pobreza. “A periferia da província é o retrato de uma região abandonada”, testemunha o jornalista.
Os indicadores da Caritas, organização humanitária da Igreja Católica, apontam que na Rússia há 30 milhões de crianças e 15 milhões delas vivem abaixo da linha da pobreza. Praticamente todas na Sibéria.
O número de crianças de rua na Sibéria é o maior desde o fim da Guerra Fria. Segundo a Caritas, 4% dos menores são órfãos e as altas taxas de desemprego e a baixa renda causam a desnutrição e falta de acesso à educação.
O estádio de Kaliningrado visava consolidar a presença militar russa em área estratégia para um conflito nuclear |
O uso de drogas aumentou 500% em 20 anos e 30% das mortes de jovens são atribuídas ao alcoolismo.
Os casos de Aids pularam em mais 10% só no último ano.
A expectativa de vida caiu para 55 anos em 2017.
E isto enquanto a propaganda do regime fala no Ocidente de um extraordinário reerguimento familiar, moral e religioso na Rússia sob a inspiração de Vladimir Putin, o novo Carlos Magno, ou Constantino, surgido no Oriente.
A Copa reproduziu o estratagema outrora posto em prática pelo marechal duque Grigori Potemkin (1739-1791) para agradar à tirânica czarina Catarina II da Rússia, a Grande, em viagem pela Crimeia. Cfr. Wikipedia, verbete Pueblo Potemkin
Ele mandou pintar fachadas em tapumes ao longo da estrada que percorreria a czarina, numa distância calculada.
As pinturas apresentavam povoados idílicos na recém-conquistada Crimeia e encobriam a situação catastrófica da região.
Fogos artificiais em Kaniów, Crimeia para a czarina Catarina II da Rússia ver. Jan Bogumi Plersz (1732-1817), Lviv National Art Gallery. |
O astuto recomendava à czarina não se aproximar por questões de segurança. E assim ela não teria percebido os bastidores enganosos e não teria encontrado o povo na mais completa miséria.
Após a passagem de Catarina a Grande, a fictícia aldeia era desmontada e voltada em outro local para a czarina ver.
Diz-se que a czarina voltou enganada e convencida de que as políticas para o bem-estar do povo eram as corretas.
À vista dos modernos estádios e da máquina de segurança da Rússia 2018 muitos podem ter ficado impressionados pelas aparências.
Mas essas, em verdade, custaram a desgraça de incontáveis russos e esconderam a desgarradora miséria material e moral reinante nesse imenso país.
Muitos acabaram retornando a seus países ou desligando a TV sem perceber que assistiram a uma “Copa Potemkin”.
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