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Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs
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Deus quer que sua glória tenha realizações históricas nos povos, razão pela qual os russos e os ucranianos, na presente guerra, atraem as atenções universais.
A Rússia foi a única nação apontada por Nossa Senhora em Fátima, em relação com o triunfo de seu Imaculado Coração.
Quando Ela apareceu, em 1917 a Ucrânia integrava a Rússia, da qual ela é o próprio berço.
Agora Deus permite essa guerra, não sendo difícil considerar sua relação com a Mensagem de Fátima e o Reino de Maria nela anunciado.
Talvez o leitor fique surpreso com o silêncio que se faz sobre os planos de Nossa Senhora. Para entender melhor essa situação, é preciso voltar no tempo.
Batismo da Rússia
Até o ano de 988 o mundo eslavo de origem étnica viking incluía, numa imensidade territorial sem muita organização, as futuras Ucrânia, Rússia, Bielorrússia e partes de outros países.
Caudilhos se impunham pela força das armas e usavam títulos de czares, césares, reis ou análogos.
O nome
Rus ou
Rutênia significaria “remadores”, pois os vikings dominavam os grandes rios das estepes remando em seus barcos.
Naquele ano a primazia era de Kiev, hoje capital da Ucrânia, onde com a morte do príncipe Igor assumiu a regência (945 a 969) a viúva
Santa Olga.
Ela foi a
primeira soberana eslava batizada (em 945 ou 957), recebendo o nome cristão de Yelena em memória da imperatriz de Constantinopla.
Santa Olga defendeu o trono de seu filho Sviatoslav I contra rebeliões ferozes.
Não conseguiu convertê-lo, mas seu neto, São Vladimir o Grande, reinou de 980 até 1015 com os títulos de Grão-Duque de Kiev e de todas as Rússias, ou ‘Tsar de todas as Rússias’.
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São Vladimir o Grande, príncipe de Kiev e primeiro ‘Tsar de todas as Rússias |
São Vladimir foi batizado perto de Sebastopol (Criméia), cidade que possui uma catedral com seu nome.
Depois voltou para Kiev, onde toda a sua família e o povo pediram o batismo.
Tudo isso na década do ano 990. O Batismo de Kiev levou o mundo eslavo a se tornar católico.
O príncipe abateu os monumentos pagãos, destruiu os ídolos, combateu a bebedeira, trabalhou pela conversão de seus súditos e edificou numerosas igrejas, entre as quais a da Dormição da Virgem, primeiro templo em pedra do país.
O Patriarca de Constantinopla doou à nova catedral um esplêndido mosaico de Nossa Senhora. De Moscou só se tem uma primeira notícia no ano 1147.
Cisma diabólico e santo “uniatismo”
O demônio, que já agia no seio da Igreja, assanhou-se contra o império eslavo e católico nascente.
O Papa Pio XI explicou o fato na encíclica Ecclesiam Dei, de 11-11-1923.
No ano 1054, o patriarca de Constantinopla, Miguel I Cerulário (1000-1059), provocou o Grande Cisma do Oriente, infestado de heresias.
Ele era a cabeça do rito greco-católico estabelecido por São João Crisóstomo e, qual novo Lúcifer, arrastou legiões de bispos e fiéis à perdição.
Os Papas procuraram trazê-los de volta ao redil de Cristo. Pio XI destaca entre eles o papel de São Gregório VII, que invocou as bênçãos celestes sobre Demétrio, príncipe de Kiev e rei dos Russos, e sobre a rainha, a pedido do filho do casal que estava em Roma.
Os Papas Honório III, Gregório IX e Inocêncio IV enviaram legados aos príncipes, até que, em 1255, com a unidade refeita, o Núncio coroou Daniel, filho de Romano, como rei de todas as Rússias.
Esta união durou muitos anos, ensina a Ecclesiam Dei, malgrado os percalços. Notadamente a invasão mongol da Europa pela Horda Dourada de Batu Cã e Subedei, uma das guerras mais letais da História, entre 1236 e 1242.
Eles devastaram a Rússia e chegaram até a Polônia e a Romênia, derrotando os austríacos, os húngaros e os cavaleiros teutônicos. Na Hungria, mataram metade da população.
Finalmente retornaram à Ásia, mas conservaram Moscou, onde se fundiram com a população eslava local.
No Concílio de Florença (1431-1445), conhecido como de Basileia, Dom Isidoro, Metropolita de Kiev e de Moscou, cardeal da Santa Romana Igreja, em nome de todos os povos de sua língua, jurou conservar santa e inviolável a unidade na fé de Roma, ratificando a promessa de 1255.
Mas o inferno contra-atacou em 1453, quando o otomano Maomé II tomou Constantinopla, onde, segundo os erros cismáticos, residia o Espírito Santo após abandonar Roma.
Convencidos pela calamidade de que o Espírito Santo não poderia estar nessa cidade, os bispos do rito grego-católico reuniram-se com legados pontifícios no Concílio de Brest (1595-1596), na atual Bielorrússia, e juraram se submeter aos Papas de Roma.
Daí procede o nome “uniata”. O Papa Clemente VIII confirmou o referido Concílio na
Constituição Apostólica Magnus Dominus e convocou a Igreja para agradecer a Deus pelo passo dado.
Mas o tsar de Moscou, Teodoro I — filho de Ivã IV, o Terrível — não aceitou tal decisão porque, como seus antecessores, utilizava-se dos bispos para consolidar suas conquistas.
Convocou então um Sínodo e, sob ameaça de morte, obrigou os bispos a se dobrarem ante um “Patriarcado de Moscou” de sua invenção, bem como a reconhecerem que o Espírito Santo estaria em Moscou — a dita Terceira Roma, após Roma e Constantinopla.
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São Josafá Kuntsevytch (1580-1623), mártir. Túmulo em São Pedro, Vaticano |
“Por meus ucranianos, espero converter o Oriente”
Contudo, o Arcebispo de Polotsk (Bielorrússia), São Josafá Kuntsevytch (1580-1623), resistiu e baniu os cismáticos, sendo por isso martirizado em Vitebsk, no ano 1623.
A brutalidade do crime estarreceu muitos cismáticos, que acabaram se reunindo na Igreja greco-católica ucraniana, fiel a Roma.
Por ocasião da beatificação desse mártir, em 1643, o Papa Urbano VIII defendeu a União de Brest com palavras que se revestem de importância em nossos dias:
“Por meio de vós, meus ucranianos, eu espero converter o Oriente”. (Cfr. Miroslav Zabunka e Leonid Rudnytzky, The Ukrainian Catholic Church, 1945-1975, St Sophia Association, Philadelphia, 1976, p.9.)
São Josafá foi canonizado por Pio IX em 1867 e seus restos mortais são venerados numa urna de cristal na Basílica Vaticana.
Em sentido contrário, o Patriarcado de Moscou foi extinto pelo mesmo capricho dos tsares que o criaram.
Em 1721, Pedro o Grande, achando-o uma velharia incompatível com a modernização do império, acabou enterrando-o por quase dois séculos, até que, aproveitando-se da derrubada da monarquia pelo comunismo, alguns bispos cismáticos interesseiros o restauraram.
A Revolução bolchevista precisava daquele patriarcado para enganar mais facilmente o povo, e o recompôs com a condição de ele pregar o socialismo.
O Soviete dos Comissários do Povo, tribunal do terror marxista, concedeu-lhe cidadania em 5-2-1918.
Com as sucessivas chacinas comunistas, dos 50.960 clérigos cismáticos — os ditos “popes” — então existentes, só restaram 5.665.
Dos 90.000 monges sobraram algumas centenas; e das 40.500 igrejas e 25.000 capelas cismáticas restaram apenas 4.255, e mesmo assim em ruínas.
O ‘patriarca’ Tikhon protestou, tendo sido encarcerado e torturado. Saiu do cárcere prometendo que “a partir de agora não sou um inimigo do poder soviético”.
Tikhon morreu em 1925, quiçá envenenado, e o ‘Patriarcado’ continuou como agência do ditador de plantão, sendo seus membros escolhidos pela polícia política comunista.
Holodomor: genocídio soviético
Grande parte do povo ucraniano pertence à etnia cossaca (ou povo livre, indômito e guerreiro), também presente em países vizinhos.
Os cossacos permaneceram cismáticos e os tsares de Moscou lhes ofereceram muitas concessões em troca de servirem em unidades de cavalaria.
Para alguns, eles são a coluna vertebral da Ucrânia moderna, como diz o hino nacional: “Nós somos da linhagem cossaca”.
Quando o comunismo destronou os tsares, os cossacos lutaram pela monarquia.
Em vingança, o ditador Joseph Stalin, com a cumplicidade do “Patriarcado de Moscou”, exterminou pela fome entre 6 e 8 milhões deles.
Paradoxalmente, os únicos a denunciarem o crime ao mundo foram os bispos católicos, que escreveram:
“As sequelas do regime comunista se tornam cada dia mais aterradoras. Seus crimes horrorizam a natureza humana e fazem gelar o sangue [..].
“Protestamos diante do mundo inteiro contra a perseguição de crianças, pobres, doentes, inocentes, e citamos os algozes diante do Tribunal de Deus Todo-poderoso.
“O sangue dos famintos e escravizados tinge a terra da Ucrânia e clama aos Céus pedindo vingança, o pranto das vítimas da fome chega até Deus no Céu”. (Mons. Ivan Buchko First Victims of Communism: White Book on the Religious Persecution in Ukraine, Roma, 1953)
Por sua vez, o comunismo obrigou os greco-católicos ucranianos a apostatar, ingressando no ‘Patriarcado de Moscou’, e lhes confiscou todos os bens.
Os católicos resistentes foram martirizados, enviados à Sibéria, ou se refugiaram na clandestinidade, sendo o único grupo religioso que resistiu ao comunismo.
O arcebispo-mor dos católicos greco-ucranianos, Dom André Sheptytskyi, Arcebispo de Lvov e Patriarca de Aliche, apelou ao Papa Pio XII:
“Este regime só pode se explicar como um caso de possessão diabólica coletiva”.
E pediu ao Pontífice que todos os sacerdotes do mundo “exorcizassem a Rússia soviética”. (Pe. Alfredo Sáenz S.J., De la Rusia de Vladimir al hombre nuevo soviético, Ediciones Gladius, Buenos Aires, 1989, pp. 438-439)
Infelizmente, nem os governos ocidentais nem a Santa Sé atenderam a esses lancinantes clamores.