A lembrança das incontáveis vítimas injustiçadas ainda está viva |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
“O demônio da ira de Caim, a arbitrariedade e a ferocidade mais selvagens, se ensenhorearam da Rússia nos dias em que se glorificava a instauração dos princípios da igualdade, da fraternidade e da liberdade”.
Esse é o testemunho de Ivão Bunin (1870-1953) que conseguiu fugir da Revolução libertadora do povo em 1918. Ele levou seus apontamentos redigidos no calor das revoluções, e que lhe serviram para ganhar o Nobel de Literatura em 1933, segundo descreve reportagem de “El Mundo” de Madri.
Pronunciar o nome de Ivão Bunin na Rússia comunista era suficiente para ser acusado de “propaganda antissoviética” e condenado a trabalhos forçados.
Foi o que aconteceu com Varlam Shalamov. “Você dizia que Bunin era um grande escritor russo...” começou o comissário do povo. Seu caso, então, já estava julgado e a condenação já estava lavrada.
De início, Varlam passou um mês numa cela de castigo em Dzhelgala: o alimento diário era de trezentas gramas de pão e uma xícara de água.
O interrogador Fiódorov cobria o rostro “com um lenço perfumado” durante os interrogatórios, sinal do estado do preso.
Varlam Shalamov contou o que viveu em 'Relatos de Kolima'. |
Foi sentenciado a 10 anos de trabalhos extras no extremo oriente do país, na jazida mineira de Kolima, região de Magadán, entre o mar da Sibéria e o Ártico, onde o inverno dura 12 meses.
Foi lá que Varlam coletou os dados para o desgarrador testemunho literário de os “Relatos de Kolima” que agora foi traduzido por vez primeira para o espanhol e se tornaram acessíveis.
Varlam confessa que ele era “um firmes partidário do poder soviético”. Foi militante leninista quando estudante universitário em Moscou.
Em 1929, o novo ditador Stalin já se tinha consolidado no poder e suprimido os opositores.
Valam foi preso pela primeira vez por difundir do Testamento de Lenin e condenado a três anos de trabalhos forçados numa indústria químico-papeleira em Víshera, região dos Urais.
Voltou a Moscou nos anos 30 para ser aprisionado durante “O Grande Terror”, o mais terrível período de expurgos, detenções e assassinatos de massa do stalinismo.
Foi condenado como “inimigo do povo” no verão de 1937 acusado de “atividades contrarrevolucionárias trotskistas” (KRTD, segundo a sigla em russo).
Virou escravo até sua libertação 1953, ano da morte de Stalin.
Até aquele ano, segundo a historiadora Anne Applebaum, desde 1929 data da grande expansão do Gulag, ou sistema de campos de trabalhos forçados, 18 milhões de pessoas viraram escravas do comunismo.
Num gulag feminino |
Para explorar os recursos naturais das zonas mais inóspitas do gigantesco território russo, planificadores e engenheiros ao serviço da ideologia marxista montaram projeto de povoamento forçado de locais inabitados e inabitáveis onde o chão ficava gelado a maior parte do ano.
Etnias ou cidades inteiras foram levadas pela violência policial para fundar cidades, construir portos, ferrovias, faraônicas infraestruturas como o canal do Mar Branco, explorar minas de ouro, de urânio, de carvão, poços de petróleo e derrubar milhares de hectares de bosques para aproveitar a madeira.
Tal vez milhões de caveiras jazem sob essas “realizações” amaldiçoadas.
Shalamov passou nisso 20 anos. Foi comemorado pelos amigos quando voltou, mas ele já nunca mais poderia se sentir membro da intelectualidade que frequentou na juventude.
Solzhenitsin lhe propôs escrever juntos o livro denúncia que depois ficou famoso como “Arquipélago Gulag”.
Mas Varlam achou que as descrições de Solzhenitsin estavam muito aquém do retrato dos horrores que ele tinha padecido. Pareciam-lhe construções filhas da fantasia.
O “Arquipélago Gulag”, segundo ele, descreve de modo propagandístico campos de trabalho idealizados que não detalham em toda sua crueza aqueles onde Varlam trabalhou.
Desenhos das toruras |
Longe da fé, enlouquecido pelas lembranças dos horrores vividos, morreu em janeiro de 1982 num centro para doentes psiquiátricos crônicos, tal vez recitando para si algum de seus patéticos e alucinados versos:
“Comi como um animal, / bebi como uma besta, lambendo a água / cada noite / ficava surpreso de estar vivo ainda / sussurrava versos como orações. / E os venerava como um ícone salvo na batalha, / como uma estrela que guiava meu caminho”.
Hoje, empossado mais uma vez como presidente da “URSS 2.0”, Vladimir Putin reergue monumentos a Stalin, o carrasco que torturou a Varlam e a milhões de outros cidadãos russos.
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