Putin tem necessidade do Patriarcado de Moscou para satisfazer suas ânsias conquistadoras |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
O Patriarcado de Moscou sempre foi fiel e útil instrumento religioso para o expansionismo dos czares primeiro e do regime bolchevista depois, malgrado os dois lhe tenham propinado humilhante tratamento.
O mesmo faz Putin perpetuando o maquiavelismo amoral e os projetos de hegemonia imperial de seu admirado mestre Stálin.
Ele vem manipulando esse Patriarcado, espúrio mas enganosamente influente no mundo russo e alhures com esse fim.
Um dos sonhos de Moscou consiste em submeter o mundo da “ortodoxia”, quer dizer do cisma herético gerado na revolta de Constantinopla em 1054, ao governo do Patriarcado de Moscou.
Esse é controlado por agentes da ex-KGB, hoje articulados na putinista FSB encarregada das mesmas tarefas “sujas” de sua predecessora.
Os ambientes comuno-progressistas acariciam a mesma ideia, aguardando essa unificação para tentar uma quimérica fusão ecumênica entre o Ocidente representado pelo Vaticano e o Oriente representado por Moscou.
Vendo-os cair nessa fantasia, Putin esfrega as mãos de maquiavélico estratego.
Mas, agora, o plano sofreu um inopinado golpe.
Bartolomeu I, autoproclamado patriarca ecumênico da “Nova Roma” (Constantinopla) e “primeiro entre iguais” entre as cismáticas Igrejas Ortodoxas, reconheceu a “autocefalia”, ou independência, das igrejas cismáticas na Ucrânia. A decisão foi adotada durante um Sínodo na islâmica Istambul.
Bartolomeu está reduzido à última expressão eclesial, quase sem seguidores na muçulmana Constantinopla (Istambul para os turcos). Conserva, porém, no mundo cismático, o triste prestigio de continuador doe Fócio e Miguel Cerulário fautores principais do péssimo grande cisma do Oriente.
Para Kiev, a decisão de Bartolomeu I foi um sucesso político contra o ativismo putinista do Patriarcado de Moscou, escreveu “The Guardian” de Londres.
Dito Patriarcado defende a ilegal anexação da Crimeia e o apoio russo aos separatistas do leste ucraniano, pois essa é a vontade política do chefe inescrupuloso do país.
Se a vontade do omniarca mudasse para o outro lado, o Patriarcado entortava a língua na hora.
Os Patriarcas Bartolomeu de Constantinopla e Kiril de Moscou ontem se abençoavam. Agora se amaldiçoam. Quanto durará? O prejudicado é Putin |
“A decisão [de Bartolomeu] desmentiu as ilusões imperialistas e as fantasias chauvinistas de Moscou”, comemorou o presidente ucraniano Petro Poroshenko.
“Está em jogo a nossa independência, nossa segurança nacional, nossa soberania, é uma questão de geopolítica mundial”, acrescentou.
O gesto de Bartolomeu soou como uma bofetada no rosto do próprio Putin. Um porta-voz do Kremlin reconheceu que o líder russo se sente “extremamente atingido” e que seu regime “defenderia os interesses dos crentes ortodoxos” na Ucrânia em caso de “ações ilegais”.
Ele já usou sofismas análogos para invadir a Crimeia.
A ideia de Putin e dos ideólogos a seu serviço é que há um único “mundo russo” com uma única igreja e uma única cultura representada pelo Patriarca Kiril de Moscou, ele também agente treinado pela polícia secreta soviética KGB.
Kiril ameaçou romper relações com Bartolomeu. A disputa do ponto de vista religioso é tão medianamente relevante quanto a ruptura entre dois arcebispos protestantes. A verdadeira gravidade e impacto da fratura se faz sentir no expansionismo político e militar russo.
O bispo Hilarion Alfeyev, espécie de ministro de relações exteriores do Patriarcado de Moscou, se encontrava em Roma assistindo ao Sínodo da Juventude e correu a implorar o auxílio do Papa Francisco, segundo o site desse Patriarcado.
O pontífice o recebeu prontamente "num clima de amabilidade" não se tendo dados sobre o combinado entre ambos.
A independência dos cismáticos ucranianos não só rebaixa ainda mais as expectativas do ecumenismo, mas expõe de modo até desprestigiante as divisões internas entre os cismáticos.
O Patriarcado de Moscou correu a pedir o auxílio do Vaticano para manter o controle cismático da Ucrânia |
Mas, em sentido contrário, o povo ucraniano mais ligado ao cristianismo do que às novas teorias pseudo-religiosas, parece não ter tomado conhecimento dessa fátua proibição.
Hilarion protestou pela TV russa: “nós não reconheceremos essa autocefalia, e não teremos outra opção senão cortar as relações com Constantinopla.
“O patriarca de Constantinopla não terá mais o direito de ser tratado de líder dos 300 milhões de ortodoxos do planeta. Pelo menos a metade desses não o reconhecerá em absoluto”.
É claro que o Patriarcado de Moscou, e o próprio Hilarion, têm menos ainda autoridade para exigirem para si o reconhecimento enquanto líderes dos ortodoxos do planeta.
Enquanto se propaga o desentendimento nas seitas dirigidas por Moscou, as igrejas cismáticas ucranianas tendem a se unir para se livrar da escravidão que exigem os vassalos do dono do Kremlin.
Hilarion também esbravejou contra um suposto complô americano por trás do fato, segundo a velha e gasta fórmula da propaganda soviética.
Filarete, autoproclamado Patriarca de Kiev após ser metropolita na Ucrânia a serviço do Patriarcado de Moscou nos tempos da falida URSS, hoje é um áspero crítico do presidente russo, chegando a dizer que está possuído por Satanás, segundo noticiou a agência Forbes.
Injúrias do gênero são muito frequentes no “mundo da ortodoxia” onde pode se discutir quem pertence e em que medida – maior ou menor – ao pai da mentira.
O valor dos impropérios mútuos é mais ligado à dependência de cada um da renovada KGB e à sua transformação em ações de força policial da FSB.
Filarete foi um oficial da polícia secreta russa e leal servidor do estado ateu soviético. Hoje o jogo político mudou. Ele discrepa de Putin por razões patrióticas e a KGB e a FSB não têm poder efetivo na Ucrânia, excetuados os atentados.
O desprestígio trazido pelas fraturas entre cismáticos favorece o apostolado dos greco-católicos ucranianos já muito numerosos |
Isso é um requisito chave da propaganda para seduzir o povo russo, e aos “idiotas úteis” do Ocidente.
Putin multiplica suas manifestações públicas de “fé” por ânsia de poder. Ditos gestos não influenciam a prática religiosa dos russos.
É fato que as práticas religiosas crescem enormemente na Rússia, mas é por fora das encenações do líder do Kremlin e dos bispos do Patriarcado de Moscou.
Almocei várias vezes com um jovem universitário moscovita de passo em São Paulo. Ele me contou que sua família era “ortodoxa” mas só pisava a igreja na Páscoa. E que fugia de qualquer contato com o clero “ortodoxo” porque não acreditava em seus sacerdotes.
Explicou-me que entre os fiéis cismáticos russos esses clérigos têm fama de mafiosos, de pessoas perigosas das quais é bom ficar longe.
Exemplificou-me com o Patriarca Kiril que, segundo ele, anda rodeado de guarda-costas em carros blindados em virtude de escuras lutas pelo controle do tráfico de tabaco.
O povo liga intensamente seu sentimento religioso à identidade nacional e por isso Putin o explora, explicou a agência Forbes.
Putin sabe que precisa explorá-lo se quiser se perpetuar no poder.
Por isso, acrescenta Forbes, o presidente ucraniano Poroshenko pode dizer que a decisão de Bartolomeu põe em cheque as 'ilusões imperiais' do ditador russo.
No total, a declaração de Bartolomeu implicou numa vitória política para a Ucrânia, numa perda para a Rússia e seu esforço de projeção mundial.
Está trazendo também uma diminuição do prestígio de Putin no interior de seu próprio país.
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